No Brasil, acabamos de concluir um golpe parlamentar. Trata-se de uma modalidade de golpe que não tem tortura física, mas psicológica; lideranças políticas indesejadas não são exiladas do país, mas sofrem todos os tipos de jogo sujo e manipulação da impressa, do judiciário e dos opositores no parlamento; não tem fechamento do Congresso, mas tem manipulação de suas regras de funcionamento.
O golpe parlamentar é uma novidade na América Latina no século XXI e vem acontecendo quando um governo, legitimamente eleito, perde o poder de articulação política, tem índices de popularidade e de aprovação do seu governo muito baixos; tem seu partido e parte dos membros do seu governo envolvidos em esquemas de corrupção; perde o poder de governabilidade; leva o país para uma crise econômica e tem baixo poder de comunicação com a sociedade. Quando esses elementos se juntam, unindo oposição e ex-aliados numa maioria parlamentar, onde um de seus membros lidera a tomada do poder, temos um golpe parlamentar que se articula em torno da alegação de algum delito atribuído ao presidente, delito que serve para justificar a sua cassação, por dentro da chamada “legalidade”, com objetivo de salvar o país do caos. E quando o presidente eleito goza de um desgaste muito grande, parte da população, que já quer sua saída, passa a apoiar tal procedimento.
Claro que a combinação dos fatores supracitados leva um país à paralisia e é motivo para cassação do governo por meios adequados e, numa democracia mais aprimorada, a decisão deveria ser tomada pela população em consulta pública. Todavia, no caso do Brasil, os jogos de interesses, o envolvimento de um número muito grande de parlamentares envolvidos em casos de corrupção, o atropelo a institucionalidade veio como forma de livrar muita gente dos escândalos em que estão envolvidos.
Se até quinta-feira, dia 12/5/2016, muitos não compreendiam que estavam em curso um golpe no país, talvez, a partir dos fatos ocorridos nessa quinta, possamos colaborar para o entendimento. Vamos aos fatos? Dilma foi cassada? Não. Depois de um longo processo que passou pela Câmara dos Deputados e chegou ao Senado, concluiu-se que há fundamentos para apuração de provas, julgamento e tomada de decisão final sobre se houve ou não desrespeito à Lei de responsabilidade fiscal e a consequente cassação do mandato de Dilma. O processo foi aberto, cabendo ao Senado a posição final, e, enquanto isso acontece, Dilma deve ficar afastada do governo por um período máximo de seis meses. Se for condenada, perde o mandato, aí, sim, deixa de ser presidenta do país. Até a Cassação, continua como presidenta eleita.
Se Dilma for afastada pela legislação, o vice assume, sendo este seu papel quando a presidenta viaja em missão diplomática para fora do país, tira férias ou fica doente. Se Dilma ainda não foi cassada, nem o poder presidencial está em vacância, pois, na formalidade do processo, ela foi só afastada, logo o governo em curso ainda é de Dilma, e seu projeto deve ser tocado pelo seu vice, que foi eleito junto com ela defendendo um projeto político comum que foi apresentado em campanha. Bem, se Dilma foi somente afastada para investigação, mesmo que tenhamos certeza de que vão cassar seu mandato, o que significa o vice fazer discurso como se fosse o novo presidente do país e não presidente em exercício? Fazer uma reforma ministerial? Nomear todos os ministros de acordo com a reforma ministerial por ele proposta? Mudar o slogan do governo Dilma? Dizer que é um governo de salvação nacional? Apresentar um conjunto de propostas de longo prazo para sociedade?Isso não é golpe? É golpe, um golpe sem nenhum disfarce. Nesse momento, no país, temos uma presidenta eleita que foi afastada e um presidente golpista no poder.
E como é que podemos enfrentar esse golpe? Uma maneira é fazendo dois movimentos simultâneos: primeiro, fazendo uma disputa de opinião pública para consolidar a ideia de que temos um golpista no poder e que suas ações não têm legitimidade. O segundo, mais complexo e que se estende a longo prazo, trata-se de um ativismo político de oposição propositiva que envolve um longo processo de construção de uma nova direção política e moral para o país. Isso implica na organização da sociedade em grupos múltiplos de interesses e pressão política; num longo processo de educação política para um novo padrão civilizatório; na formulação coletiva de um projeto de inserção do país na interação regional e internacional, que seja fundamentado num padrão de crescimento com distribuição de renda, de riqueza e de proteção ao meio ambiente; numa reforma do Estado que inclua uma agenda profunda de reforma política, reforma do poder judiciário, reforma fiscal, regulamentação democrática dos meios de comunicação, mecanismo de participação social e radicalização da democracia. Essa não é uma tarefa para um partido político, é uma tarefa para uma sociedade, uma tarefa para os que apostam na democracia e no pensamento crítico.