Alguns anos atrás, eu tinha perdido uma das edições da revista Ficção, histórias para o prazer da leitura, componente de uma pequena coleção que fui formando regularmente em meados dos anos 70, quando era universitário, editado mensalmente por Cícero Sandroni. Era um número especial, porque além de publicar Máximo Gorki, como autor estrangeiro, entre os escritores brasileiros, divulgava um conto do Barão de Itararé, ‘O castelo abandonado’, considerado uma peça raríssima. O jornalista e escritor gaúcho lançou poucos trabalhos literários, focando-se mais no jornalismo político, entre o humor e a sátira mordaz, texto sempre inteligente e combativo.
A minha felicidade em encontrar essa coletânea de contos, deslocada entre tantos livros que repousam nas prateleiras, me inclinou a escrever alguma coisa sobre a figura engraçada do autor.
Apparício Torelly, ou como ele mesmo se autodenominou, Apporelly (junção dos dois nomes de batismo, o comum com o de família), concedeu mesmo o grau de Duque, passando para o rebaixamento, o título final de Barão de Itararé, o único da república, alusiva a uma cidade que ficava na divisa de São Paulo com o Paraná, de reputada magnitude em decorrência de um episódio que nunca chegou a acontecer.
Curiosamente, esta cidade de Itararé seria palco de uma sangrenta batalha entre os remanescentes da Revolução de 30, daí a suposta importância histórica. Gera uma onda de especulação entre os colegas do Barão e seus leitores sobre a comenda e o questionado conflito, e consolida, a partir dessa e de outras discussões, o gênero do humor, influenciando uma geração de escritores e jornalistas que, em sua grande maioria, também pautavam as melhores causas populares.
OS OSSOS DO BARÃO
Tudo começa com o nascimento de Apporely marcado por mistérios e disputas. Conta-se que teria nascido a bordo de uma carruagem, ou diligência, talvez uma carroça puxada por animais, no Uruguai, em direção a terras gaúchas, enquanto seus pais tencionavam fixar residência na fazenda da família materna no sul.
Acontece que parte dos historiadores, admiradores do Barão, já no Rio Grande do Sul, onde seus pais moravam, e os aficionados a leitura do escritor, contestam esta versão de que ele teria nascido no país vizinho, afirmando ser um verdadeiro gaúcho dos pampas..
Revendo os primeiros documentos, o fato é que, na matrícula de ensino escolar, Apporelly foi registrado como nascido no Uruguai, enquanto seu título de eleitor sustentava uma naturalidade gaúcha, mas sem indicação de nenhuma cidade rio-grandense.
O próprio Barão teria resumido: A minha mãe, Maria Amélia, era filha de um estadunidense descendente de russos. Já o meu pai, João Aparício Torelly, foi filho de um italiano com uma gaúcha, consumando “uma verdadeira Liga das Nações”.
Desse tempo primevo, pouco se lembra de sua genitora. Mal começava a vida, teve morte trágica, suicidou-se quando tinha 18 anos e ele apenas 18 meses; mais tarde, então criança, seu pai o enviou a um internato jesuíta no vale do Rio dos Sinos.. E, ali, no colégio, Apparício Torelly iniciou-se no humorismo em 1908, no jornalzinho “Capim Seco”, satirizando os padres, seus predecessores, e a disciplina dos jesuítas de São Leopoldo.
Torelly, sonhava ser advogado, mas o pai o mandou estudar medicina, argumentando: “Para que um advogado consiga boa clientela, precisa ter muito talento. Um médico, basta assinar receitas e atestados de óbito”. Apesar dessa orientação, abandona o curso de Medicina no 4º ano e começa a escrever. Publica sonetos e artigos em jornais e revistas, como as Revistas Kodak, A Máscara, Maneca e inicia o jornalismo em Porto Alegre, colaborando no jornal Última Hora.
AS TRANÇAS DO MONARCA CALVO
Retornando à história do título, conforme versão dos jornais, durante a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas partiu de trem rumo à capital federal, então o Rio de Janeiro, propagou-se que haveria uma batalha em Itararé. Isto foi vastamente divulgado na imprensa, nas revistas e nos tabloides da época. Assim surgiu seu pseudônimo através desse boato, divulgado, inclusive, pelo próprio Barão.
Segundo sua análise, esta batalha ocorreria entre as tropas fiéis a Washington Luís e as da Aliança Liberal que, sob o comando de Getúlio Vargas, vinham do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro para tomar o poder. Mas, antes que houvesse o embate, já antevisto como o “mais sangrento da América do Sul”, fizeram conchavos. Estabeleceram um acordo nos seguintes termos: uma junta governativa assumia o poder no Rio de Janeiro e não aconteceria nenhum conflito.
Ainda na sua avaliação, diante dessas circunstâncias, “Bergamini pulou em cima da prefeitura do Rio, outro companheiro que nem revolucionário era ficou com os Correios e Telégrafos, enquanto outros patriotas menores foram exercer o seu patriotismo a tantos por mês em cargos de mando e desmando… e eu fiquei chupando dedo”. Sem coisa alguma, “foi então que resolvi conceder a mim mesmo uma carta de nobreza”. Recriminou: “se eu fosse esperar que alguém me reconhecesse mérito, não arranjava nada”. Por isso, “passei a Barão de Itararé, em homenagem à batalha que não houve”.
Mais tarde, nas páginas de seu jornal A Manha, justificava a passagem de uma comenda pra outra: “o Brasil é muito grande para tão poucos duques. Nós temos o que aqui?” Responde: “O Duque Amorim que é um duque dançarino, que dança muito bem, mas não briga, e o Duque de Caxias que briga muito bem, mas não dança. E agora eu, que brigo e danço conforme a música”, louvando-se na esperteza dos políticos da nossa república.
O certo é que todos esses episódios narrados e pontuados sobre teóricas batalhas, seguidos de ufanismo, muito assemelhados à “história das tranças do rei careca”, e às justificativas de títulos que não existem mais, demonstram a sua enorme capacidade de brincar com a nossa sisuda historia, de forma hilariante, quando não havia a divulgação de grandes mentiras, apenas fino humor, por onde se cruzavam costumes políticos muitas vezes nada republicanos.
A MANHA
Em 1925, já conhecido nos meios literários e jornalísticos, o Barão é convidado para trabalhar no jornal O Globo, de Irineu Marinho. Com a morte de Irineu, Apporelly, a convite de Mário Rodrigues (pai de Nelson Rodrigues), passa a ser colaborador do jornal A Manhã. Ainda nesse mesmo ano, no mês de dezembro, Torelly estreava com seus sonetos de humor que, geralmente, tinham como tema um político do momento.
Faziam sucesso tanto sua coluna humorística, como poemas que escrevia na primeira página, e era estimado devido à chamada “A Manhã tem mais…”.
No ano seguinte, em 1926, publica um semanário que viria a se tornar o maior e mais popular jornal de humor da história do Brasil. Inaugura o gênero, bem ao seu estilo de paródias. O novo jornal da capital federal tinha o nome de A Manha (de manhoso) e usava a mesma tipologia do jornal em que Apparício trabalhava, sem o til, fazendo toda diferença, que era reforçada com a frase ladeando o título: “Quem não chora, não mama”
Em 1934, fundou o Jornal do Povo. Nos dez dias que durou, o jornal publicou em fascículos a história de João Cândido, um dos marinheiros da Revolta da Chibata, de 1910. Em represália, o barão foi sequestrado e espancado por oficiais da Marinha, até hoje, nunca identificados. Depois desse episódio, voltou à redação do jornal e colocou uma placa na porta onde se lia: “Entre sem bater”, mantendo o seu fino espírito humorístico.
Em 1947, foi candidato a vereador pelo então Distrito Federal com o lema de sua campanha: “Mais leite, mais água, mas menos água no leite”. Ele se elege com 3669 votos, o oitavo mais votado do PCB. Meu pai, que foi das hostes do partido, o conheceu pessoalmente e se orgulhava dessa apresentação, por ocasião de um congresso no Rio. Nessa mesma época, impressionou-se com a sua atuação de orador, observando que o Barão não fazia rir não só a plateia, mas também as comunidades (favelas), que suspendiam a programação para ouvir as sessões da câmara, que, com a presença do Barão, passaram a ser transmitidas pelo rádio.
No Rio, Estado da Guanabara, o partido conquistou 18 das 50 cadeiras e o Barão foi o oitavo mais votado. No entanto, em janeiro de 1948, vem uma nova onda de ataque à democracia. O PCB restou proscrito. Os vereadores perdem seus mandatos. Como o próprio Barão anunciou em seu jornal: “um dia é da caça, o outro é da cassação”. Por isso, “saio da vida pública para entrar na privada”. M
Ao deixar o plenário da Câmara naquele dia inglório, gritou: “Viva a Revolução… de 30”! A polícia só ouviu a primeira parte e o Barão foi detido num navio-prisão, durante dois meses e meio.
O jornal A Manha circulou até fins de 1935, quando Apporely teve prisão novamente decretada por ligações com o Partido Comunista Brasileiro, então clandestino. Ainda que não tivesse participado da Rebelião de 1935 – a Intentona Comunista — foi preso, tendo sido companheiro de cadeia do escritor Graciliano Ramos, a quem chegou a lamentar seu ostracismo: “A Manha deixou de circular e eu com ela”.
Foi libertado em dezembro de 1936, já ostentando a volumosa barba que cultivaria por boa parte de sua vida. Retomou o jornal por um curto período, até que viesse nova interrupção, ao longo de todo o Estado Novo, mas sempre ressurgindo, voltando em edições espasmódicas até 1959.
A partir daí, amargando sucessivas crises, por falta de recursos financeiros, não conseguiu reeditar A Manha, passando a publicar Almanaques, um jornalzinho semestral, até relançar seu antigo jornal em São Paulo, durando apenas dois anos.
Em 1955, escrevia colunas no diário A Hora e no quinzenal Paratodos, dirigido por Jorge Amado. Quando veio o golpe de 1964, o Barão se sentia doente. Dizia: “Antigamente, minhas pernas levavam meu corpo. Agora, é o meu corpo que arrasta as minhas pernas”. Em 1971, deu sua última entrevista para a revista Realidade. Sobre a ABL, afirmava que, para um escritor entrar naquele sodalício, “precisava esperar um imortal se contradizer e morrer”. O Barão faleceu no dia 27 de novembro daquele ano.
LEGADO
Para os historiadores, Apparício Torelly não entrou na Academia, mas tornou-se verdadeiro imortal. São dele expressões como “Há algo no ar além dos aviões de carreira”; “os galinhas-verdes”, aplicada aos integralistas (fascistas da década de 1930); “quando pobre come frango, um dos dois está doente”, e tantas outras relacionadas no livro Máximas e Mínimas, comentada no final dos anos 70 pelo jornalista Gervásio de Paula, para uma publicação do jornal O povo.
Torelly representava vanguarda, resistência à opressão, firmeza e destemor. O romancista do povo Jorge Amado, no prefácio à obra Máximas e Mínimas, escreveu: “Não houve no Brasil, na década de 40, escritor mais unanimemente lido e admirado do que o escritor cujo riso, ao mesmo tempo bonachão e ferino, fazia a crítica aguda e mordaz da sociedade brasileira e lutava pelas causas populares. Mais do que um pseudônimo, o Barão de Itararé foi um personagem vivo e atuante, uma espécie de Dom Quixote nacional, malandro, generoso e gozador, a lutar contra as mazelas e os malfeitos”.
Nessa mesma linha, os editores de Ficção destacaram que o jornalista Apparicio Torelly vergastava “sem medo os desmandos e a fatuidade dos poderosos”. E, a par dessa impetuosa dimensão quixotesca identificada por Jorge Amado, “sendo homem de cultura e estudioso das ciências biológicas”, ele “não tinha a menor paciência com os pavões e papagaios de nossa intelectualidade”.
O conto que abaixo reproduzimos – O castelo abandonado — integra Almanaque, obra publicado em 1948, o mesmo trabalho que dela retira a revista que acabamos de encontrar (Revista Ficção n° 12, dezembro de 1976), constituindo um primor de rigor técnico, escrita concisa, dedicado unicamente a um tema, uma espécie de metaliteratura, uma verdadeira aula sobre a curta narrativa.
O mais engraçado é que o conto não chega a ser um conto, pelo menos não da forma convencional, parecendo mais uma espécie de ode, uma narrativa curtíssima e ao mesmo tempo inovadora, ao dividir o texto minúsculo (para os padrões literários da época) em cinco capítulos — embora se dissesse um homem de luta que não sabe capitular.
O Castelo Abandonado
CAPÍTULO I
Silencio absoluto e repouso relativo
O silencio era absoluto. Sim. O silencio era tão grande, mas tão grande mesmo, que enchia completamente todas as dependências do velho castelo abandonado e invadia os arredores numa enorme extensão a perder de vista ou, melhor, a perder de ouvido. Assim não era possível perceber-se qualquer ruído, por mais modesto que fosse.
Uma mosca varejeira que voasse ali, com o seu zumbido característico, pronto! Entornaria o caldo, pois quebraria aquele silêncio, que não chamaremos de tumular, porque como já dissemos e não gostamos de repetir, o local não era o de um cemitério, mas de um velho castelo abandonado.
CAPÍTULO II
Ausência da vida e da morte
Evidentemente naquela residência medieval, não poderia residir ninguém, do contrário não seria um castelo abandonado. Por consequência, não é possível admitir-se ali a presença de qualquer ser vivente. Se estivesse alguém escondido atrás da porta ou dormindo nalgum quarto dos fundos, então o silêncio seria perturbado, pelas pisadas ou alterado pela simples respiração, principalmente se o intruso fosse portador de uma bronquite crônica, ou de uma asma de mau caráter.
Para que o silêncio seja considerado absoluto, conforme afirmou o romancista, que é um varão de rija têmpera, incapaz de mentir e muito menos de voltar sobre seus passos, é necessário que desde já fique definitivamente estabelecido que no castelo não havia viva alma e muito menos alma de mortos que costumam fazer enorme algazarra nos castelos abandonados, arrastando móveis pesadíssimos que não saem do lugar, além de promover uma barulheira infernal com grilhões de correntes invisíveis.
CAPÍTULO III
O estado do vigamento e a dilatação dos corpos pelo calor
Assentado, portanto, formalmente, que não há nem pode haver seres vivos nem mortos no castelo abandonado, surge, agora, uma importante questão, relativa ao vigamento, que deve estar em boas condições, De fato não seria possível concordar-se com a existência de um pau podre ou carunchado, pelo singelo motivo de que ali, conforme já ficou combinado, não poderá haver caruncho ou cupim, nem baratas, nem ratos, nem nada, em virtude do silêncio completo que reina despoticamente no recinto e que é preciso manter a qualquer preço, porque combinação é combinação.
Uma outra dificuldade, porém, muito mais grave, no final desse capítulo, relacionada ainda com o vigamento, que, como já vimos, não pode ser velho. Mas também não pode ser novo. Primeiro que tudo, porque é sabido que a madeira nova dilata-se e contrai-se com enorme facilidade, com as variações de temperatura e, então, a madeira estalaria perturbando o silêncio que já agora estamos dispostos a manter até o fim, aconteça o que acontecer!
CAPITULO IV
Falta de tudo, mas não falta vergonha!
Um velho castelo abandonado, sem ninho de andorinhas, sem aranha, sem corujas, sem morcegos, é um absurdo! Mas o pior é que temos que imaginar um velho castelo, sem vigas, sem esquadrias, sem forro, sem assoalho, um castelo enfim sem um pedaço de madeira. Ora, um ambiente assim despido de todo conforto, é o lugar mais impróprio para um romance de gente alinhada.
Qualquer romancista desonesto, aproveitaria esse velho castelo abandonado para meter ali um casal suspeito e narrar um série de cenas escabrosas para explorar e corromper o público.
Eu não faço isso. Prefiro arrancar pedras no meio da rua em dia de sol quente, a lançar mão desses processos para arranjar dinheiro.
CAPÍTULO V
Estamos, pois, diante de uma barreira instransponível. Um velho castelo abandonado, mergulhado em absoluto silêncio, onde não há nem pode haver pessoa viva ou morta. Um casarão sem nada dentro, completamente vazio, sem a menor comodidade. Será possível que em tal meio alguém possa arquitetar uma cena ou desenvolver uma ação? Esta pergunta só pode ser respondida pela negativa mais positiva.
Desta maneira sem nenhum recurso, sem um personagem para remédio, não é possível se fazer romance.
Num gesto de desespero, poderia incendiar o castelo e reduzi-lo a cinza com a mesma facilidade com que tenho queimado muitos manuscritos.
Poderia, ainda, dando de ombros rasgar todos estes originais e jogá-los displicentemente, com todos efes erres, dentro da lata do lixo.
Mas é certo também que, com um pouco de boa vontade e uma grande dose de arrojo, poderia congelar os alicerces desse castelo e, pelo processo de Franck, removê-lo, como se fosse um templo, para um local habitado e barulhento.
Nada disso, entretanto, seria correto. O castelo não é meu. Encontrei-o abandonado e silencioso. O meu dever é deixá-lo como o achei.
EPÍLOGO
Esta história chega ao seu fim. Os capítulos estão tumultuados. E em desordem. Não é de admirar. O autor deste romance é um homem de luta, que não sabe capitular.
Era uma vez um Castelo Abandonado.
Pois, então, que abandonado continue, porque sobre ele também estou disposto a fazer perpétuo silêncio!
E fica dito por não dito.