Fabricantes de Mentiras IV

O surgimento midiático da radiodifusão, da capacidade de transferir informações pelo espectro eletromagnético, pelas ondas do rádio e, logo em seguida, via emissão de imagens pela televisão, exigiu uma maior capitalização das empresas jornalísticas. O modelo europeu de radiodifusão estatal enfrentou o modelo norte-americano de concessões privadas. O Brasil seguiu os Estados Unidos. A comunicação eletrônica do lado de cá do Atlântico foi operada, praticamente desde o início, por agentes privados que obtinham concessões públicas para operar o espectro radioelétrico.
 
A partir da década de 1980, a própria Europa muda sua forma de tratar a comunicação eletrônica e adere ao padrão norte-americano. Afinal, a força do neoliberalismo já era incontestável e propunha destruir todos os resquícios do chamado welfare state. Era preciso utilizar o Estado como maximizador dos negócios empresariais privados e não ser o executor de políticas públicas. Assim, desse modo, restou “priorizando os meios dentro dos próprios meios”.
 
A primeira metade do século XX teve nas verbas publicitárias o maior e quase absoluto provedor de recursos necessários para sustentar a imprensa e a radiodifusão nas Américas. Salvo as poucas emissoras estatais, a maioria dos veículos era privada. Assim, a chamada comunicação pública era realizada por entes privados regulados por uma série de dispositivos legais, tendo como um dos objetivos principais conter a concentração econômica.
 
No Brasil, tais regulamentos sempre foram atenuados no caso da radiodifusão. O primeiro código brasileiro que regulou o rádio surgiu no início da década de 1960. Apesar de uma série de regras e de objetivos alegadamente públicos e nacionais, as concessões das emissoras de rádio e televisão se converteram em moeda de troca para o apoio governamental e foram sendo obtidas pelos políticos locais, organizadas em redes de emissoras controladas por poucas famílias.
 
Aqui, nunca a sociedade civil teve força para aplicar um regulamento público aos meios de comunicação privados que atuavam na comunicação pública. Além disso, os donos desses grupos (familiares) não estavam preocupados com a qualidade, senão formal, pois tinham “consciência dos meios enquanto poder” e sabiam que “esse poder tem pouco a ver com o conteúdo, ou seja, os meios dentro dos meios” ( Marshall Macluhan, Os meios de comunicação como extensões do homem, tradução de Décio Pignatari, Cultrix,  1964, p. 71).
 
É importante destacar que essa abordagem sobre a sociedade do espetáculo e alguns de seus importantes substratos (politica-espetáculo, pânico, cultura do ódio, histeria vermelha, analfabetismo, controle e censura) servem também de base para melhor compreensão dos fabricantes de mentiras, como eles encontrariam a nossa sociedade em décadas anteriores.
 
1.SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
 
Ainda nos primeiros anos da expansão da televisão pelo mundo, em 1967, Guy Debord publica A sociedade do espetáculo (1997). Nesta obra, apontava a supremacia da imagem como fundamental à formação de um público passivo diante das necessidades do capitalismo de vender sua gigantesca produção de mercadorias. Todo o produto era apresentado como espetacular, e o ato de consumi-lo constituía um verdadeiro espetáculo. No capitalismo, tudo passou a ser espetacularizado para atender à mercantilização de todas as esferas da vida.
 
O fato é que a criação de novas necessidades era fundamental diante da satisfação das necessidades existentes. O espetáculo serve a esse imperativo, sem o qual o consumismo se arrefece, de tal modo golpearia o capitalismo e sua necessidade constante de venda. Assim, a expansão das comunicações carregava a possibilidade de criar um amplo público consumidor sempre à espera de uma novidade, de um novo produto.  
 
Existe uma crítica foucaultiana à ideia de uma sociedade de espetáculo, uma vez que o real seria composto de corpos e forças, não de imagens e signos. Do mesmo modo, pensadores inspirados em Deleuze poderiam também afirmar que o que caracterizaria nossas sociedades depois do pós-Guerra (1945) seria a disseminação do controle (SILVEIRA, Sérgio Amadeu da, Comunicação pública, propriedade Privada, Comciencia, acessado em 04/05/2023).

A rigor, esse controle pode ser também chamado de censura, ato tão antigo quanto a divulgação das próprias ideias. Historicamente, esse controle sempre existiu, e os historiadores registram, ao longo dos séculos, sob a tutela de regimes totalitários e democráticos, como os governantes têm tentado sufocar, por meio de censura, o esforço de comunicação. No Velho Testamento, por exemplo, é possível encontrar restrições ao que “não deve ser publicado nas ruas de Askelon”. Na antiguidade grega, Platão destacou como virtude “a supressão de ideias contrárias ao que é permitido pelo Estado”. Roma preservou alguns dos princípios gregos então estabelecidos pelo governo da polis e puniu autores de sátiras políticas. Mas, durante a Idade Média e o Renascimento os tribunais do Santo Oficio exerceram uma censura perseguidora e cruel.

No século XV, René Descartes teve sua obra proibida na Holanda. E o escritor inglês John Milton já se manifestava em defesa da liberdade da escrita: “matar uma pessoa significa destruir uma criatura dotada de razão, mas reprimir um bom livro significa destruir a própria razão”. Movido por esse sentimento libertário, a Inglaterra foi o primeiro Estado a abolir a censura, ao não renovar a lei de autorização. Também essa liberdade de expressão chega à Alemanha, onde o rei Cristiano VII aboliu a censura nos ducados de Schlewig e de Holstein. No novo mundo, a declaração de independência de 1776 já declarava a liberdade como direito inalienável. E a proclamação de sua Constituição de 1791 preconizava a liberdade de religião, da palavra e da imprensa ( MATTOS, Sérgio, Mídia controlada, Paulus, 2005, p.48).

Na França, a Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, de 1789, derrogou a censura. Em 1848, a Alemanha, com sua nova Constituição Imperial, também proibiu a censura, mas em curto período. Vem a Primeira Grande Guerra e, com a derrota alemã, nova liberdade se inscreve na Constituição de Weimer que, por sinal, durou cerca de 15 anos. A censura retorna àquele país com Hitler assumindo o poder em 1933 e os jornalistas, considerados hostis ao regime nazista, são perseguidos de forma brutal. Em virtude da proliferação de regimes autoritários, inclusive no Brasil que, em 1964, instalou uma ditadura militar por duas décadas, a censura foi exercida em todas as suas formas mais violentas. Aqui, como exemplo dos mais lamentáveis, registramos a morte do jornalista Wladimir Herzog, nas dependências do DOPS, em circunstâncias pouco explicadas e convincentes.

Banida a censura no mundo ocidental, devido a imperativos de ordem democrática, os seus estilos se desenvolveram de forma mais sutil como meros mas eficientes controles, começando com o próprio Estado, porque “na impossibilidade de censurar ou perseguir”, passa a controlar os meios de comunicação através das “concessões de direito de emissão e os tem distribuído, em geral, segundo as conveniências de quem governa”.

Na sequência, uma outra forma é quando “o empresário de um jornal ou rede influente ordena e estrutura a pauta”, assim “favorecendo os grupos e indivíduos que quer, perseguindo os que deseja”. E o terceiro tipo “decorre de uma espécie de servidão voluntária”, quando o patrão passa a submeter “os interesses jornalísticos na apuração ou na edição a cálculos de vantagens políticas para o grupo” (GOMES Wilson, Transformações da política na era da comunicação de massa, Paulus, 2004,  p.176).

O fato é que a espetacularização não implica a negação da disciplina e muito menos o afastamento do controle. Apesar da caracterização do espetáculo livre, em Debord, que exigiu, por princípio, a aceitação passiva, ou seja a redução da potência humana à condição de espectador, é possível ver essa forma espetacular crescer no século XXI, com uma liberdade irrestrita, em um mundo recoberto pela Internet, mas já com intensa interatividade conectiva.

Aqui, nesse espaço, desde logo devemos advertir sobre separação entre controle efetivado pelo capital (exercido pelo proprietário da organização que seleciona conteúdos), controle pela sociedade (através de normas e regras) e censura. Aliás, no momento em que se debate o marco regulatório para as redes sociais, há uma confusão equivocada entre censura e controle. Afinal, não há setor da vida social em que não se tenha regulação, normas e disciplinas, a menos que se queira o caos.

1.1.Complexo de Branca de Neve

Já observamos que o suporte em comunicação é, talvez, o que se vê menos e o que na realidade prática mais conta. O suporte como matéria-prima pode ser encarado como o próprio capital.  A implantação visual demanda elevados custos de produção e pós-produção que ultrapassa a mera estética. Mas não deve ser confundido com os bastidores desses meios de construção e montagem da comunicação.

É interessante observar que na década de 60 a civilização da imagem passou a ser um espelho, como uma janela para o mundo, como falso milagreiro, valorizando o veículo pela mensagem, ou como cambistas travestidos de autoridades religiosas vendendo o céu, a imprensa fala de imprensa, reportando matérias jornalísticas sobre como foram realizadas, do aprendizado da televisão, que passa o tempo todo falando de televisão.

Normalmente, como se utilizasse de uma metacomunicação, há também a sociedade do espetáculo de como foi obtida a noticia ou a imagem. Fato é que boa parte dos espectadores e leitores dos anos 70 olhavam o mundo e o mundo da noticia como quem mira a si mesmo, como a rainha de Branca de Neves (ECO, Umberto, Sobre imprensa, Revista da AMB, 1999, n° VI, p.16).

1.2.Politica-Espetáculo

As leis que formam a opinião pública não são tão fáceis como se imaginam, porque a retroalimentação entre a reação espontânea da cidadania e a tendência à simplificação própria da sociedade-espetáculo nos meios de comunicação deixam muito espaço para a demagogia, quando normalmente os cidadãos são condicionados a esquecer que o sufrágio universal é o instrumento de legitimidade e que são inseridos em teias burocráticas que apenas chancelam algumas identidades.
Reporta-se um pesquisador que a política enquanto realidade é tediosa, um lugar repetitivo, comum e extensiva, com um cotidiano burocrático, pendências em comitês e coisas do gênero. Para entender essas pendências, seria necessária a convocação do espectador, até então claramente passivo. Nessa ativação, a civilização da imagem tem valorizado essas controvérsias partidárias, produzido jogo de cenas, criando “personagens e disputas supérfluas”, porém, “desvinculando o público do processo político em si e dando-lhe outra forma de participação, engajando-o como audiência de um espetáculo de entretenimento” (MATOS, Heloiza, A politica como entretenimento: uma visão do espetáculo midiático in Comunicação na Polis,Vozes, 2002,  p 230).

Na verdade, surgido como fenômeno da dissolução das fronteiras entre público e privado, levar as questões políticas e partidárias ao entretenimento junto ao grande público televisivo constitui antes de tudo um “laboratório” como alternativa a uma sociedade cujas noticias são medianamente insuportáveis, para formar uma nova espécie — a telerealidade, ou mais comumente o grande show da realidade, portanto, um programa baseado na vida real — tratado como espetáculo, assim, os personagens, os próprios políticos ganham outra dimensão estética, no nível da celebridade, ao serem retratados por eles mesmos, caracterizando um gênero televisivo autônomo que, por sua vez, incorpora o drama, o folhetim,  e, sobretudo, o documentário.  

1.2.1.Política dos Escândalos

Muito além da discriminação e do ódio, a ação informacional pela politica dos escândalos constituiu, e constitui até hoje, um dos meios mais eficientes e perigosos de mediação, produzindo, a um tempo, a espetacularização da noticia e o declínio dos partidos políticos, um terreno fértil para os ousados fabricantes de mentiras e demagogias.

Manuel Castells, em seu monumental trabalho sobre a era da comunicação, pontua que “na última década, sistemas políticos foram abalados em todo mundo e líderes políticos tiveram sua imagem destruída, em uma sequência ininterrupta de escândalos”, de modo que essas agremiações “solidamente instalados no poder por cerca de meio século entraram em colapso”. Constata: “a luta para influenciar a ampla faixa intermediária do espectro politico do eleitorado turvou quase por completo os tons ideológicos” e, acrescentamos, como atitude suicida, para manter o mesmo nível de adesão e conservação das bases assim, “fizeram enormes esforços para usurpar, tanto quanto possível, os temas e as posturas politicas de seus adversários” (Na era da informação: economia, sociedade  cultura – o poder da identidade, tradução Klauss Brandini, Paz e Terra, 2001,p.394).

Não é difícil, à luz dessa lição, ponderar que os escândalos parecem afirmar uma opção. A rigor, uma alternativa para diversos destinatários, sejam os partidos políticos, os comunicadores, os empresários, os mediadores, enfim, todos os atores e líderes sociais que acabam praticando escândalos  e caindo nas armadilhas do sistema, muitas vezes mudando a lógica do resultado: o caçador de agora será a caça seguinte. Ou, como os publicitários aventaram numa campanha para bebidas fortes, mas que não produziam efeito nenhum, quando o consumidor olhava para o espelho completamente saudável apesar da ingestão alcoólica: “eu sou você amanhã”.

1.3.Pânico e Histeria Vermelha

No panorama midiático do começo do século XX, as populações americanas eram pacifistas, e não havia nenhum motivo para serem encorajadas a se envolver numa guerra europeia. Não passaram seis meses, e o Presidente Woodrow Wilson, que se elegera com a plataforma de campanha “paz sem vitória” mudou esse rumo ao instituir a Comissão Creel. Depois da atuação desse novo órgão de propaganda, os que eram pacifistas logo viraram histéricos belicosos com o objetivo de eliminar tudo que fosse alemão, partir os germânicos em pedaços, entrar na guerra e salvar o mundo.

Para Noam Chomsky, esse feito foi importante mas levou a outra ocorrência: o pânico vermelho. Utilizando a mesma técnica de persuasão levada a efeito pela Comissão encarregada da propaganda do governo Wilson, insuflou-se uma espécie de histeria coletiva, principiando a destruir sindicatos e problemas perigosos como a liberdade de imprensa e a liberdade de pensamento político, uma estratégia apoiado pela mídia e líderes empresariais que, por sinal, se organizaram e investiram muito nessa iniciativa. E ela foi, de um modo geral, um grande sucesso” (Mídia propaganda política e manipulação, tradução de Fernando Santos, Martins Fontes, 2020,  p.12).

Dentre as mais ardilosas notícias, inventaram por exemplo que os comunistas cometiam uma série de atrocidades, como canibalismos, do tipo “arrancar braços de bebês belgas”, ou “comer criancinhas”. Porque, em circunstâncias de disputas, é necessário desviar a atenção do “rebanho desorientado”. Esse pânico foi lastreado às instituições, aos quartéis, às classes média e subalterna, incluindo toda a elite capitalista, como um lance midiático que também encorajou o ódio e o preconceito, apoiando, inclusive, aventuras externas, sendo necessário instigar essas populações. Para fazer essas operações midiáticas é preciso amedrontá-las.

No plano psicológico-comportamental, a grande maioria das pessoas é guiada pela emoção, pelo impulso, muitas vezes sem racionalidade, pelo sentimento. “Aqueles que entre nós dispõem da razão” – ensina Noam Chomsky – “precisam criar ilusões necessárias e simplificações radicais”  E mais: mantê-las “atomizadas, segregadas, isoladas”, no pressuposto de que elas “não podem se organizar , porque assim elas podem deixar de ser apenas espectadoras da ação”. Ou seja, essas pessoas precisam ser conservadas na passividade (Mídia propaganda politica e manipulação,  pp.20 e 23).

O terror, a vingança e o ódio são formas de se buscar o consenso disponível a qualquer governante, notadamente, junto àqueles grupos de eleitores mais fragilizados, as populações mais sofridas, arregimentando-as para que se sintam plenamente hipotecados a um líder maior, o que faz pensar e refletir, na longa estrada da dependência do poder, que dele a sua vida depende, dentro de um imoral e tendencioso movimento de sujeição.

Passaram tantas décadas, mas a histeria contra o vermelho continua presente na atualidade, talvez com mais intensidade. Ano passado, a Câmara dos Deputados analisou uma proposta que criminaliza a apologia ao comunismo. A medida está prevista no Projeto de Lei 5358/16, do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), filho do então presidente Jair Bolsonaro. Além de ser incriminado, o agente que fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos ou propaganda que utilizem a foice e o martelo ou quaisquer outros meios de divulgação favorável ao comunismo poderá ser punido com dois anos de reclusão.

1.4.Violência

Sem muito esforço de comparação, vivemos numa sociedade extremamente violenta. A lista é extensa e observamos modos e formas: violência civil contra as mulheres, contra os mais fracos, contra os humildes. Violência fanática: contra os que pensam em contrário, ou de outra maneira. Violência social nas desigualdades econômicas, nas relações de poder que configuram a vida distribuída em diversos setores: seja no posto de trabalho, na família e no cotidiano que Deus nos concede.

O tema é assunto preponderante nas rodas de conversas, noticiários de jornais, programas televisivos, nos ciberespaços da internet e em quase todos os lugares.  Thomas Hobbes, autor do clássico ‘O Leviatã’, relata que o ser humano é naturalmente violento e egoísta, e com isso justifica a necessidade de um Estado forte e autoritário para barrar essa agressividade dos humanos, pois “o homem é lobo do homem”. Avisou: sem esse Estado forte e absolutista poderíamos voltar ao estado de natureza de guerra de todos contra todos.

Mas a questão da violencia é urgente e demanda preocupação para os governantes contemporâneos.
Provavelmente em face de todas essas modificações no mundo da técnica e da exposição da imagem, a hipótese de alguém violento se transformar em uma notoriedade universal é tentadora em uma sociedade midiática. Mesmo em um país tradicionalmente cordial e pacífico como o nosso, matar uma dúzia de crianças numa escola pode parecer uma ideia associada à grande reputação, no sentido de alguém ser convertido em uma celebridade, ainda que apenas os poucos minutos de fama.

É daí que surge a gritante contradição: a universalização da informação é fator de desmobilização, de letargia social, e pode ser transformada em instrumento de incontornáveis excessos nas mãos de violentos internautas, o que representa na prática dor, sofrimento e morte, a propósito de um sujeito perdido em suas elucubrações individuais, sem encontrar um lugar no mundo que resolva diminuir suas tensões de um ser insociável que não encontra sociabilidade.

2 CONTROLE E CENSURA.

Dentre as diversas formas de democracia, duas delas se apresentam mais proeminentes. A primeira considera que uma sociedade só é verdadeiramente democrática se o povo desse Estado participar de forma completa na condução de seus assuntos e na qual os canais de informação são acessíveis e livres. Não haveria limites para a manifestação do pensamento.

No passado recente, malgrado experiências com ditaduras, à luz do absolutismo, essa participação em assuntos pessoais do governo como direito a ser informado livremente contrapõe-se à teoria arcana imperii, dominante na época dos monarcas, mas transpostos para governos mais modernos. Conforme linha preconizada por diversos pensadores, esta teoria preconiza que o poder do príncipe é tão mais eficaz e, portanto, mais condizente com seu objetivo, quanto mais oculto está dos olhares indiscretos do vulgo, quanto mais se faz à semelhança de Deus.

Pela politica dos arcana imperii, informa um dos maiores pensadores italianos, “é lícito ao Estado o que não é licito aos cidadãos privados , ficando o Estado, portanto, obrigado a agir em segredo  para não provocar escândalos”, reforçando previamente que existe um poder invisível (inspirado na máfia e nas lojas maçônicas anômalas)  ou, ainda, na concepção de Alan Wolfe, um duplo estado, “duplo no sentido de que ao lado de um Estado visível existirá sempre um estado invisível” (BOBBIO, Norberto, O futuro da democracia, tradução de Marco Aurélio Nogueira, Paz e Terra, 2000,  p.42).

A segunda concepção de democracia é aquela que considera que o povo deve ser impedido de conduzir seus assuntos pessoais e os canais de informações devem ser estreitos e rigidamente controlados. Destaca Noam Chomsky que “esta pode parecer uma concepção estranha de democracia, mas é importante entender que ela é a concepção predominante”, restrição, acrescentamos, que se interpreta em muitas direções, reacendendo um debate do controle do produto, sobre seu conteúdo, o que deságua, como pensam outros especialistas, em censura.

Em variados ângulos, as redes sociais e a internet foram levadas a se reposicionarem sobre a democracia, inclinando-se pela primeira concepção que consideram livres os canais de informação, “o que implicou um deslocamento e uma reformulação, tanto da problemática liberal quanto a autonomia individual e a auto-organização social”, enquanto os estados soberanos contabilizam riscos e danos.

O problema é que essa forma incrementada de reflexão permanece associada à função “autorreguladora da rede”, conservando essa posição desde a sua origem, enquanto uma nova teoria intermediaria entre democracia e mercado aventa que a rede, com ela as suas plataformas, “deve ser mais bem-adaptada às outras formas existente de coordenação de trocas” (LOVELUCK, Benjamin, Redes, liberdade e controle, uma genealogia politica da internet, tradução de Guilherme João de Freitas Texeiras, Vozes, 2018, p 165).

O grande debate consiste em saber se é possível converter a internet em um sistema controlado, porque não existe e nem deve existir setor da vida social que não seja regulado. Mas o que se opõe a essa regulação é o receio de que tudo isso – o nivelamento libertário de centenas de milhões de usuários das redes sociais — se transforme em uma ferramenta de intromissão e interferência estatal, o que acaba se consumando em censura.

3 PATRIACALISMO E FEMINICIDIO.

Nessa diversidade comunicacional, há aqueles que acalentam o ódio e o preconceito, com certeza, um veio interessante que os fabricantes de mentiras como conservadores certamente os possuem. Seriam, por exemplo, contrários aos movimentos de salários para as mães que se dedicam a suas famílias. Mas, diretamente ao ponto, começo avisando que sociedade patriarcal e crimes contra as mulheres são conceitos e noções distintas. O que a sociedade patriarcal tem a em comum com o feminicidio?

No mundo jurídico, o homicídio qualificado pelo feminicídio é conhecido como um crime proveniente do patriarcado, por ser uma forma direta de controle e posse sobre o corpo feminino, bem como uma autoafirmação da superioridade da força masculina, uma vez que busca demonstrar a manutenção e a reprodução de um sistema baseado no poder do homem sobre a mulher, tendo esse homem heterossexual como organizador e provedor de toda família, tal como acontecia na idade média.

Manuel Espanha, estudando essas sociedades, ensina que entre marido e mulher havia uma geometria variável: “um amor igual e desigual ao mesmo tempo”. Igual, baseado “numa promessa comum e recíproca de ajuda”, onde essa igualdade “seria decisivamente facilitada pela igualdade da condição e riqueza dos cônjuges”. Desigual porque partia das diferentes naturezas do homem e da mulher, dos “sentimentos mútuos dos cônjuges – e logo os deveres correspondentes – não são iguais nem recíprocos”. E “uma boa ilustração disto é o adultério”. As consequências de uma traição conjugal têm pesos diferentes para homens e mulheres (O direito dos letrados, Boiteux, 2006, p.169).

A prática deste crime é destacada pela reação do ódio quando a mulher almeja a sua autonomia, seja com o uso de seu corpo, seja conquistando uma posição social que normalmente confronta com a que é exercida por homens, desafiando o pensamento machista e patriarcal. Portanto, o crime é produto do sistema antigo que compreende uma série de ações: a violência sexual; maus tratos psicológicos; violência doméstica; tortura; abortos; privação de alimentos; entre outros métodos os quais ocasionam à mulher sofrimento, dor e crueldade.

É evidente que patriarcalismo e feminicídio influenciam os fabricantes de mentiras, porque o seu perfil bate com essa forma de sentimento revanchista,  de vingança, além do que, por consequência, são também guiados por “grande preocupação com sua imagem social, com base na força e sua respeitabilidade de macho”. Neste sentido, são emocionalmente imaturos, violentos e descontrolados, passando, com esses sentimentos, a estupidez de notícias passionais, criando as diversas modalidades de fakes News.

De uma maneira geral, os fabricantes de mentiras possuem ideias fixas sobre determinado conteúdo, sem razão ou motivação crítica, como o próprio sistema patriarcal enraizado que vem do berço, sem contestação, compreendendo que sua violência advém de direitos que supostamente pensam possuí-los unicamente, como a bandeira partidária de suas ideias, semelhante a uma mulher cujo corpo nasceu para servir no momento que o homem quiser, obrigando-a a satisfazer suas fantasias e desejos.

4.EXCLUSÃO E PRECONCEITO, EIS A QUESTÃO

Esse problema não quer ser problema porque comunicação, linguagem e poder não tensionam arena de disputa. Comunicar não é dialogar e sendo essas esferas mescladas, numa “intricação”, reproduzindo um termo utilizado por Dominique Quessada,  parece difícil definir isoladamente para saber qual delas é a causa dos outros. É fácil constatar: o detentor da comunicação e da sua linguagem é a do seu donatário, portanto, a linguagem comunicada é também a linguagem do poder, agora, como um meio planetário de troca e obra de comercio, assim, estabelecendo pretensamente os termos de sua potencia socializante e avassaladora.

O que os pensadores dessa década estabelecem é que essa linguagem acionada industrialmente, apesar de depurada, purificada e desembaraçada, nem por isso encontra unanimidade entre os indivíduos que, à luz da democracia, se descobrem irmãos e, por questões culturais, muitas vezes, rejeitam o modo enigmático da servidão voluntária, o que, certamente, resulta em busca obstinada pelo consenso, no sentido de que todos devem ser adestrados mas, curiosamente, essa impossibilidade também e, sobretudo, é a razão de ser desse idioma pretensamente colonizador.

A questão é muito antiga. Platão, no livro X, de A república “pronuncia a exclusão dos poetas fora da cidade pela razão oposta: eles dependem de um paradigma antigo ou pré-escritural, o regime do aprendizado de cor submetido a clichês ou à memória”. É a oralidade eficiente dos trovadores que, por razões de cultura, sobrevivem no nordeste, como os cantadores e os repentistas.

Ou seja, recorriam ao que decoravam ou ao padrão  memorial. “A crítica platônica da escrita é uma denegação das condições práticas do trabalho filosófico” para “aquele que não escreve”. No entanto, “a busca das essências no decorrer dos Diálogos supunha uma cultura estritamente escrita”. Prelecionou: “que ninguém entre aqui se não for geômetra: se não for alfabetizado” (BOUGNOUX Daniel, Introdução as ciências da informação e da comunicação, tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, Vozes, 1994,  p.94).

Essa aquisição das letras é importante porque, nas palavras de Marshall Mcluhan, constitui “uma tecnologia que dispõe dos meios de criar o homem civilizado”, ou seja, indivíduos iguais, porém, separados perante a lei escrita. Ensinou: “uma simples geração de alfabetizados na África, hoje – como na Gália há dois mil anos – é suficiente para desligar o individuo da teia tribal” ( Os meios de comunicação como extensões do homem, tradução de Décio Pignatari, Cultrix, 1964, p.103) e, por conseguinte, logo inseridos em outra realidade, o mundo civilizatório da razão…

Desde a antiguidade grega, a escrita já apresentava o risco de ser apenas instrumento de uma minoria, próxima do poder, ou de quem o detinha. Na idade média, quem não conhecia o idioma, conhecia os costumes, a tradição. Precisavam de leituras, mas não era só isso. Necessitavam também compreender, interpretar, porque a escrita permite esses movimentos e passa a possuir “uma memorização superior à oralidade”. O texto, próprio das sociedades complexas, “fala tanto no modo como o recebe quem o lê como na intenção de seu autor” (ROULAND, Norbert, Nos confins do direito , tradução Martins Fontes, 2003, p. 33).

A rigor, uma pessoa analfabeta é um sujeito que ignora o conhecimento do alfabeto: “não sabe nem de alfa e nem de beta”. Em resumo: não sabe ler e escrever. Imagine a quantidade de informação que esse iletrado deixa de acessar –como eficiente código de acesso, assentado que o idioma falado e escrito é autoestrada do ser –, sem contar as restrições das suas atividades profissionais. Aliás, segundo pesquisa do Ministério da Educação, temos 6,6% da população, em números  são 11 milhões de analfabetos no Brasil (dados de 2019) que sofrem com essa falta de aquisição.

Nesse sentido de exclusão, observamos que a ampliação física da ágora eletrônica, sua recriação e hoje sua ressignificação, que não se restringe à casa do cidadão, mas extensivo ao seu lugar de trabalho e lazer, poderia propiciar mais informação dentro do conceito que os especialistas projetam de “abundancia da sociedade civil”, rica em informes de todas as formas, como fornecedora de instrumentos capazes de operar a verdadeira cidadania.

Definitivamente, a civilização da imagem possibilitou a abundância da informação, mas, segundo os especialistas da época, faltou reivindicação de direitos e, mais ainda, consciência sobre os mesmos. O problema então questionado em nome dessa exclusão: “megavoltagens de informação” para baixíssima recepção, o que se desconfia que representou (e representa) desperdício.

O analfabetismo ainda preocupa o país e atinge certamente a sua economia. Mas, o que chama atenção de todos, neste momento, é um novo tipo de analfabetismo, o analfabeto digital, ou seja, a falta de competências digitais que vão deixar inúmeras pessoas sem atividades profissionais nos próximos anos, justamente porque a sociedade globalizada não é apenas a sociedade da imagem, nem do espetáculo, porque se constitui basicamente em redes sociais através dos computadores.

A questão cultural, como o mesmo problema da falta de aquisição da escrita, os analfabetos, que é muito mais ampla, nessa nova esfera publica desintegrada poderia ser descrita com uma única palavra: discriminação e preconceito. Pior: um problema que a nova esfera insinuava resolver mas até hoje não solucionou, mesmo nas condições históricas propícias.

5. CONSUMIDORES DE NOTÍCIAS COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO.

Antes de qualquer avaliação sobre o tema, vale o registro histórico de que o consumo, em si mesmo, em todos os tempos, foi e continua sendo uma forma de comunicação eficiente e avançada. Então: sendo a “base do comércio ”, como se referiam os historiadores do século XIII, o consumo constitui uma troca civilizada, momento em que sujeitos sociais se comunicam e naturalmente se relacionam promovendo negócios, escambos, compras e vendas, elevando o consumo a um idioma, uma linguagem comercial acima de qualquer outro dialeto.

As noticias escritas que circulavam na velha Europa, segundo informa Mitchell Stephens, possibilitavam aos homens de negócios dividir sua visão de um mundo comercial – quando era possível imaginar navios cargueiros chegando, juros sendo pagos e lucros auferidos —  através das informações (caras e onerosas) “que trocavam os comerciantes de trigo de Veneza, os comerciantes de prata de Antuérpia, os mercadores de Nuremberg, os financistas de Augsburg e seus sócios no mundo inteiro”, então, no século XVI, aglutinados para a formação de “uma sociedade baseada nesta nova sensibilidade”, voltada à “crença nos direitos do capital” (História das comunicações, dos tantãs aos satélites, tradução de Elena Gaidano, Civilização Brasileira, 1993,  p.174).

Essa modalidade de comunicação levada a efeito pelos próprios consumidores de noticias me chamou a atenção em leituras sobre navegação. Informou um submarinista britânico que, quando os chineses, pelo menos quase um século anterior às grandes navegações e descoberta das Américas, estiveram no nosso continente, esses orientais “esperavam conhecer grandes potentados estrangeiros e presenteá-los com finas sedas e porcelana, integrando esses países no “sistema tributário chinês”, mas os povos “não praticavam comércio e aparentemente não possuíam reis” (MENZIES, Gavin, 1421 o ano em que a China descobriu o mundo, tradução de Ruy Jungmann, Bertrand, 2007 p.169).

Desse relato, há que se deduzir que os povos do Brasil, antes de Pedro Alves Cabral, não eram chefiados por monarcas, razão por que não foi possível permuta entre imperadores, portanto, não houve comunicação, e as únicas referências foram a de que todo litoral da costa sul americana era repleta de índios, pacatas florestas, coroadas de funchais e intermináveis floras de erva-doce, vez por outra entrecortadas por sons, vozes de animais: “assovios, gritos, rugidos abafados e grasnidos”.    

Ainda sobre diversos temas da desintegração da esfera pública e a questão do analfabetismo, o mercado e, com ele, os donos das organizações comunicacionais passaram, mais tarde, a se importarem muito com isso. Porque, na verdade, somos vorazes consumidores de noticias, ouvindo e vendo o que se passa em todos os quadrantes da vida social.

Não é ocioso destacar que houve um rebaixamento da cidadania enquanto dimensão da política. O discurso mesmo privado fala a linguagem do Estado. Este, por sua vez, fala da linguagem da administração, um dialeto que apela para as necessidades ou do que realmente interessa. Nessa linguagem direcionada aos consumidores de notícias, as manobras sutis são difíceis, mas as generalizações são fáceis.
Evidente que isso não passa de uma deformação em referência à linguagem cotidiana. Em vez de dialogar com os destinatários de forma direta e transparente, passaram à omissão. Não é estranho que ao invés de criticar, por exemplo, defendam a necessidade da prorrogação de um imposto impopular através de outros meios, sempre argumentando a deficiência de caixa, porque desde sempre o Estado é deficitário e assume essa repetida narrativa.

Dentro desse panorama, normalmente, o cidadão é informado pelo que escrevem, falam ou filmam e, além disso, a forma como recebe a informação, qual o veículo, “pelo que, como que, e as partes são veiculadas no jornal, na revista, no rádio, na televisão”. Por esses meios, somos também violentados com as grandes novidades sobre os processos comunicativos, os quais transformam também em sociedades mediatizadas, adormecidas, dementes no sentido de que ninguém mais é capaz de saber com antecedência as ações do opositor e em que lado se posicionar.

Nessa indeterminação de ações, a meta da comunicação é o consumo, e para isso terá que exercer uma poderosa dominação sobre os consumidores. A rigor, a mídia “trabalha contra o espírito crítico do cidadão”, contra o público que pretende representar. Sem exagero, trabalha diuturnamente “para dirigir o pensamento social do indivíduo para que tenha uma dependência”, uma sujeição necessária a respeito de determinados conceitos. Também esse grupo não presta contas com ninguém. Age como se fosse público, mas não é. Não cumpre as normas, os direitos à informação, os mais comezinhos. Mesmo representando o coletivo, não possui interesse público. “Ele é outro bicho” (BUCCI, Eugênio, O estado de narciso, Companhia das Letras, 2014, p 09).

Ainda nesse século, começamos a viver um mundo sem as disputas de classes, com o fim da guerra fria, final da história, da ideologia, aparentemente uma “ideologia sem ideologia” (uma ideologia que transborda ideologia), voltada para o consumismo – perfeitamente contemplada por um curioso “principio de diferenciação generalizada” — o mesmo que “comanda um sistema de relações entre as categorias sociais, segundo o qual os objetos possuídos são os marcadores das posições sociais, os indicadores de uma classificação”.

Isso quer dizer que o status das pessoas, diante desses indicadores de uma classificação, é marcado pelo que consome e elitizado pelo o que possui. Numa palavra: “o consumo de objetos significa, no sentido forte do termo, o valor intrínseco de um individuo em função do lugar que ocupa” (CASTEL, Robert, As metamorfoses da questão social, uma crônica sobre o salário, tradução de Iraci D.Poleti, Vozes, 1998, p. 475).

6.PARA NÃO CONCLUIR

Em revista, tivemos: cinco grandes temas, principiando com a sociedade do espetáculo, controle e censura, patriarcalismo e feminicídio, analfabetismo (exclusão e preconceito eis a questão) e consumidores de notícias como a própria comunicação. Nessa primeira temática, tivemos ainda a oportunidade de tocar em mais quatro subtemas – complexo de branca de neve, política do espetáculo, politica dos escândalos, pânico e histeria vermelha, violência, formadores da gênese do ódio.

Todos esses enfoques, que começa com a desintegração da esfera pública e domínio do capital privado, pretendem ser base teórica para a compreensão mais ampliada dos fabricantes de mentiras, cabendo a nós, nos próximos empreendimentos, com esses “fabricantes”, agora na era digital, o desafio  da abordagem das fake News.

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.