Fabricantes de Mentiras III

Talvez um dos mais significativos marcos da nova esfera que consagrou a “civilização da imagem” seja o desaparecimento do espaço tradicional, consoante os conceitos clássicos de público e privado, com “a privatização da polis”. Com a intensificação desse locus desafiador, novas regras foram ditadas para a compreensão do Estado, mercado e sistema político, surgindo a “ágora eletrônica” e, ainda naquela década e na seguinte aos anos 60, os inovadores debates sobre “utopia e iconização”, “mercantilização da política” e, sobretudo, a relativização da verdade, já estudado, como preparatório da nova era da “pós-verdade”, lembrando Montaigne, no axioma de que “se toda verdade se contradiz, então verdade é contradição”, portanto, é relativa.

O fato é que, no plano das relações, Estado, mercado e sistema político, apesar da independência de cada um deles entre si, torna-se imprescindível uma especial abordagem. Os vínculos entre eles se debilitam, mas ainda se mantêm firmes. Afinal, parte considerável do cálculo político se faz em função do desempenho macroeconômico e, em contrapartida, parcela significativa das decisões econômicas passa a ser afetada pelo desempenho do sistema político, o que constitui via de mão dupla.

A “ágora eletrônica” dessacraliza o parlamento, o congresso, as assembleias, a igreja, porque o cidadão não precisa sair de casa para saber o que está acontecendo com a politica, nem precisa mais fazer sua prece nos púlpitos religiosos, ao mesmo tempo em que desintegra a esfera pública, evidencia um momento que foi mais dramático. Hoje, naturalmente, tudo isso foi incorporado por todos e nem percebemos se houve impactos e mudanças, numa adesão silenciosa de corpo e alma.

Por sua vez, com essa nova idade mídia, chegamos ao fim das grandes narrativas, do heroísmo, das utopias, porque não é admissível vender ilusões, promessas de grandes projetos inexequíveis, justamente pelo fato de que os meios persuasivos baseados na ilusão normalmente resultam em fracassos, naufrágios e desmascaramentos, o que tem subtaxado a politica e seus sujeitos, com frequência, tornando-os tão desacreditados.

A propósito, diz Josep Ramoneda que utopia, paixão politica e militância, essas três figuras declinaram conjuntamente. Ele observa que “utopia é, também hoje, uma questão de mau gosto”. Em nome da promessa – seja no céu, seja na terra – matou-se (e continua se matando) muito e foram obtidos resultados muito pobres para que seja de boa educação continuar falando dela” (Depois da paixão política, Senac, 1999, p.122.

Na atualidade, todas as conquistas ampliadas, uma após outras, continuam constituindo “a ponta de lança da economia global da comunicação”. Depois das máquinas comunicantes, toda civilização da imagem, após o micro pessoal, temos os incontáveis circuitos em rede. Como denominou Dominique Quessada, “as autoestradas da informação”.

O que preocupa a todos nós não é a internet com as suas plataformas, nem os dados enfileirados absurdamente em algoritmos, produzindo perfis, superada a outrora hibridação — o computador como um cemitério de novidades tecnológicas ou a síntese do que foi o radio, o telefone, o telex, a máquina de escrever e o televisor – mas essa realidade grandiosa sem regulamentação produz perigos à democracia e, com eles, as bases dos fabricantes de mentira, como na idade antiga, “as paixões eram selvagens e perigosas”.

1.DESINTEGRAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA

A transformação da esfera pública em mundo privado foi um dos temas mais debatidos pelos pensadores dos anos 60, a começar por Habermas, baseado em Horkheimer, Adorno e Macuse, que recoloca seu ponto de vista dentro de uma realidade nova, retraçando “o surgimento e consequente desintegração do que ele chama de esfera pública”, tomando como base “o surgimento da comunicação de massa na forma de uma imprensa relativamente restrita e independente”, momento em que “a autoridade do Estado podia ser criticada e questionada, diante de um público informado e pensante” (THOMPSON Jonh B. Ideologia e cultura moderna, tradução de Carmen Grisci, Vozes, 1990, p. 144).

É oportuno destacar que entre o domínio da autoridade pública, de um lado, e o domínio privado da sociedade civil e da esfera íntima, de outro, emergiu um novo espaço público. Isso foi realmente decisivo e inovador para o capital: a razão pública avançou em apoio ao individuo privado, articulando um debate aberto, sem coerção estatal, com muitas promessas de redenção e certamente as garantias de fraternidade, solidariedade e igualdade para uma Europa moderna.

O problema público versus privado passa inicialmente pelo trabalho social em relação à produção. Esse trabalho é basicamente o estado do homo faber que produz objetos duráveis partilhando o seu saber de fabrico com outros homens. É a ação matricial da vida humana em sociedade.

A propósito, os homens agem e interagem uns com os outros no seio de uma vida política em sociedade. Consoante Hannah Arendt, o trabalho (labor) e a produção (work) estão no domínio da esfera privada, enquanto a ação social do homem está exclusivamente no plano da esfera pública.

Sintetiza Arendt: o privado é o reino da necessidade, enquanto o público pertence ao universo da liberdade. Adverte: a politica nunca é equivalente a um trabalho necessário à sobrevivência biológica ou à produção técnica. Ao contrário, sem ela não morreríamos. Afinal, consta como uma atividade comunicacional mediada pela linguagem da pluralidade de opiniões no confronto plenamente efetivado através do discurso e da retórica.

A sociedade atual, ensina ainda Hannah Arendt, representa a extensão da esfera privada doméstica ao espaço público da política. Afirma que o agir comunicacional da esfera política parece absorvido pelos interesses privados da intimidade. Deste modo, a esfera social deixa de estar submetida à hierarquia do Poder. A política perde a personalidade da democracia grega, transformando-se numa vontade geral burocrática, quando, acrescentamos, se busca o consenso.

Este aspecto central é visível a partir da modernidade, verificando-se a assimilação da igualdade, outrora circunscrita ao espaço político, pela esfera privada. A igualdade moderna e contemporânea rejeita a praxis (ação) e a lexis (discurso) constituintes da comunidade política, valorizando o conformismo e uniformização do comportamento. Consequentemente, o homem reduz-se a um produto quantitativo condicionado e, acrescentamos mais uma vez, suas prováveis decisões passam a ser mediadas para ser comercializadas (ANTUNES, Marco Antônio, O público e o privado em Hannah Arendt, bocc.ubi.pt/pag, acessado em 04/05/2023).

A lógica da tendência entre público e privado é de fusão ou de cumplicidade: a “publicização do privado” e a “privatização do público” constituiu um fenômeno até bem pouco tempo a conduzir a exata identificação entre ambas e não a diferenciação entre as duas esferas. Desta forma, a distinção entre público e privado tão comum entre os filósofos da antiguidade grega e dos praxistas romanos, perdeu nitidez na modernidade, vendo-se na contingência de incluir tais esferas no âmbito social, como novo espaço público, equivalente ao espaço político e o espaço privado no seio restrito da família.

Há, no entanto, uma despedida da modernidade com o surgimento de uma nova esfera. A critica radical da razão – ensina Jürgen Habermas – “paga um alto preço pela despedida da modernidade”. Primeiro, por que “esses discursos não podem e nem querem prestar contas sobre o lugar que ocupam”. Assim, “dialética negativa, genealogia e destruição esquivam-se de maneira análoga àquelas categorias segundo as quais o saber moderno, não por acaso, se diferenciou e que hoje constituem a base de nossa compreensão dos textos” ( O discurso filosófico da modernidade, tradução Luiz Sergio Repa, Martins Fontes, 2002, 467).

Esses discursos, vale observar, não eram públicos, nem privados, porque eram abertos, sem coerção do Estado, conforme Thompson. Muito menos poderiam ser “classificados univocamente nem como filosofia ou ciência, nem como teoria moral e jurídica, nem como literatura e arte”, segundo avisa Habermas. Também não podem ser tidos como religiosos, dogmáticos ou heréticos. Ainda assim tiveram “pretensões de validade apenas para desmenti-las, e o modo de sua institucionalização no domínio cientifico”.

A tendência lógica entre público e privado é de completa fusão: a publicização do privado e a privatização do público, como um fenômeno próprio daquela década que deveria conduzir a identificação e não à diferenciação entre as distintas esferas. A distinção, por conseguinte, perde a sua nitidez nessa modernidade em que se vê na contingencia de incluir tais esferas noutras realidades: no seio social, como espaço público, e o espaço privado no âmbito familiar, como já avisado.

Na sequência, ainda sobre o debate da inviável divisão, Habermas já havia demonstrado que, no capitalismo daquela quadra histórica, a mídia promoveu uma extensa e profunda colonização da esfera pública, transformando tudo em vitrine, como algo a ser visto e votável, através da força do capital, de tal modo que fatos de interesse público só podem adquirir visibilidade através do capital privado, o mesmo que detém, como será mais uma vez abordado, o poder da comunicação.

O grande problema dessa nova esfera, no entanto, surgiu em relação aos seus participantes bastante limitados, pois só integravam esse debate quem possuísse cultura e informação suficientes para manter o nível de discussão. Ou seja: parecia aberto apenas aos letrados, homens de propriedade, de acesso à cultura e à informação, capazes, inclusive, de formar uma opinião pública através de um debate livre, claro e racional, como em todos os tempos se consolidou o direito igualitário, mas como um direito dos letrados.

2. ÁGORA ELETRÔNICA

Seguramente, um dos grandes benefícios da civilização da imagem na era eletrônica das comunicações foi reservar, com especial destaque, um lugar doméstico para a ágora, ou seja, a janela por onde o cidadão assiste às disputas politicas em casa, poupando tempo e distância, porque não precisa mais se deslocar para saber o que se passa no congresso, na assembleia ou na câmara. Igualmente sem se dirigir para a pólis, passa a acompanhar todos os momentos de seu interesse enquanto cidadão, tipo aumento de impostos, CPIs, orçamentos, problemas partidários, ou do próprio governo, facultando-lhe assistir todos os debates acalorados entre situacionistas e opositores, ou, ainda, se quiser, assistir tudo isso mediado no noticiário televisivo das oito da noite, o programa cotidiano de maior expressão ou audiência, não fosse ainda a possibilidade de ver essas mesmas matérias noticiadas, agora discutidas, em outros programas, mas em nível de opinião.

É possível entender que todas as transformações tecnológicas dos meios de comunicação do pós-guerra passam pela televisão dos anos 60. Progressivamente, esse farol estranho ocupou um lugar estratégico na vida social e familiar, comparável àquele da igreja num remoto vilarejo medieval onde todos rezavam, como ritual noturno de todos os dias, a ponto do Padre Di Falco, então diretor da revista católica La Vie, lamentar que a comunhão cotidiana francesa com os noticiários televisivos tenha se transformado no principal fenômeno religioso daquela década.

Evidentemente, essa comunhão dos católicos com esses programas jornalísticos, reclamada pela igreja, não se limita à França, mas tem amplitude no mundo inteiro. A propósito, as noticias canalizadas por todos esses cenários e sua dramaticidade são transmitidas rotineiramente por várias redes, possibilitando que todo mundo veja ao mesmo tempo o mesmo programa, diminuindo espaços e provocando simultaneidade. Afinal, “quanto mais curta é a distância, mais poderoso é o que governa” (ROMANEDA, ob cit p. 105).

Não é ocioso observar, nesse ponto, que a civilização da imagem, antes de manter o cidadão informado, em formato de serviço (não se sabe o que é público ou privado) conquista sua audiência, alma e corpo, como se fosse uma “democracia de fusão”, participativa e comunicacional, e além disso o desejo de serem essas transmissão um espetáculo (sociedade do espetáculo) para atenuar tensões e, aí, promover, a um só tempo, trocas recíprocas em beneficio de todas as partes.

Dominique Quessada, a par desse espetáculo, defende “uma prática linguajeira formatada segundo as normas de operação industrial”, pois ‘na sociedade do consumo de si mesmo, mais do que qualquer outra forma de organização social anterior e ela na história, o poder da linguagem é acionado industrialmente a fim de torná-la linguagem do poder” (O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a globalização impõe produtos, sonhos e ilusão, tradução de Joana Angélica D’avila Melo, Futura, 2003, p. 116).

Acrescentaria que esse poder da linguagem, voltada para a natureza da informação que vai emitida pelos poderosos meios eletrônicos comunicacionais, retorna e passa a alimentar os tomadores de decisão, com certeza, uma retroalimentação orientadora entre o poder e o alvo pretendido a comunicar, que são os indivíduos, os grupos, as tribos em qualquer lugar que estejam.

Apenas para atualizar o debate, a questão da ágora eletrônica foi, nos dias de hoje, absurdamente ampliada, de tal modo que não a vemos mais como esse ‘locus”, de modo analógico, posto que o mundo parece ser, quase por completo, virtual, porém, anotando um forte e prematuro equivoco de decretar a morte dos antigos meios de comunicação a partir da imprensa, do livro, do jornal, da revista, do rádio e da televisão, simplesmente porque eles não desaparecem, mas são efetivamente assimilados.

Teria existindo o milagre grego da democracia e de sua ágora sem a escravatura como opacidade? E que dizer das grandes navegações, do ouro espanhol sem que houvesse o outro do novo mundo, da República de Veneza sem as frotas de seus comerciantes? Diante dessas indagações, constata Daniel Bougnoux que não haveria sequer escrita, “leitura ou debates de ideias, sem um estúdio que, por sua vez, está aninhado e caucionado á sombra de trocas mercantis favoráveis, de industrias florescentes e de cruzadores nos mares” (BOUGNOUX Daniel, Introdução as ciências da informação e da comunicação, tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, Vozes, 1994, p.36).

A olhos vistos, testemunhamos que a modernização comunicacional se acelerou a partir da segunda metade do século XX, com o aperfeiçoamento técnico de um lado, e o surgimento de novas demandas por parte da sociedade, de outro. Nessa progressão, agora assentada no século XXI, a comunicação interpessoal e de massas sofreu uma rápida transformação, mediante o aparecimento dos primeiros celulares e da internet, os quais possibilitaram a interconexão com diversas partes do mundo ao mesmo tempo por meio do compartilhamento instantâneo de informações. Notamos, no entanto, que os meios tradicionais não desapareceram, como já o dissemos, mas foram ressignificados de modo a se adaptarem aos novos tempos.
Desapareceu a ágora eletrônica? Claro que não! O que aconteceu foi sua “ampliação ressignificada”, assim, como a luz que ilumina as cidades, não é noturna, nem “é natural, mas sempre técnica ou artificial, e o bom senso apenas se torna “a coisa mais bem partilhada do mundo”, na linha dos filósofos iluministas ou racionalistas, “pelo constrangimento e quase adestramento de dispositivos bastantes materiais”, até mesmo os mais simples, “que nos apressamos a esquecer desde que os interiorizamos, numa “adesivisidade” silenciosa já observada.
Hoje temos com certeza uma ágora virtual. Além disso, há muito tempo os aparelhos eletrônicos que realizam toda comunicação variada e simultânea se formam rapidamente em um só, o que nos remete ao esquecimento. Afinal, o tempo joga a favor da falta de memória de uma quadra acelerada que faz do homem uma sucessão de estratos sem pausa para sedimentar.

3.NOVA COMPREENSÃO DO MERCADO

As lições de democracia e modernidade quebraram diversos preceitos e afastaram suspeitas, a começar pelo fato de que o mercado plenamente desenvolvido e as politicas de desenvolvimento socialmente orientadas não criam contradições quanto aos seus objetivos, o que significa dizer que estão alinhados na mesma busca de assentimento e identidade. É preciso desmitificar: estado, mercado e sistema politico não são antagônicos.

Noutras palavras: nesse novo mundo, estado, mercado e sistema politico estão no mesmo caminho de buscar a eficiência e os resultados sociais, cabendo apenas ajustes e cortes nas eventuais distorções, sendo, por essa razão, pernicioso falar em “lógica de puro mercado”, como igualmente aludir, às vezes até de forma severa, a “intervencionismo estatal”.

À falta de uma esfera pública e privada, uma interferindo na outra, consolidando um terceiro locus, forneceu elementos para o surgimento da comercialização da comunicação, reconfigurando o foco: aquilo que era um fórum privilegiado de debates públicos, seguidos de embates racionais e críticos, passou a pertencer um campo de consumo eminentemente cultural, com direito ao contraditório, seguida de “espetaculização”, quando a denegada esfera pública de outrora, a antiga ágora, se vê transformada no simulacro de democracia, um tanto fraudulenta porque o que está por trás delas é privacidade, com ares de privatização do público, criada e controlada pela indústria da comunicação.

Na segunda metade do século XVIII e inicio do século XIX, os jornais nasciam sob o signo literário, como expressões de clubes de leitura e de encontros comensais, tendo seguido o caminho da crítica política independente dos jogos palacianos. A imprensa trazia informações e críticas da condução da sociedade e dos desatinos do poder da nobreza. A leitura de Habermas nos leva a crer que tivemos um jornalismo independente que, apesar de privado, circulava publicamente, sendo um dos principais elementos constitutivos da nascente esfera ampla e aberta a todos.

No entanto, tudo vai girar em torno do capital e do suporte: não é nenhuma novidade que a emergência dessa imprensa europeia seguiu do modelo capitalista e se tornou negócio promissor. Desse modo, o jornalismo não era uma atividade idealista, voluntária, um meio de lazer, de distração ou passatempo. Tinha um lado ideológico. Normalmente, tínhamos uma imprensa independente e influenciada pelas linhas partidárias. Aliás, mais na frente, os donos do capital começaram a comprar empresas de comunicação porque se tornando proprietários mais facilmente teriam como defender seus interesses econômicos.

Nessa aquisição, o tratamento de informações, a expressão de posições sobre como conduzir a política, a luta de ideias apresentadas às amplas massas, também deveria dar lucro. Nesse sentido, a imprensa poderia ser autônoma em sua linha editorial desde que seus posicionamentos encontrassem as verbas publicitárias para mantê-la. Dificilmente um grande jornal iria sobreviver apenas pela venda de exemplares, assim mantidos idealmente por seus simpatizantes, sem outros financiadores.

Retomo, em ligeira passagem, o mesmo debate desse hibridismo em que publicizaram o privado e privatizaram o público por um só núcleo: fatos e notícias escritas e faladas de interesse público ou coletivo só podem adquirir visibilidade através do capital privado, dos donos do dinheiro, o mesmo que passou a deter o poder da comunicação.

Quanto ao suporte, baseado no fato de que a matéria comanda o espetáculo, parece que o que mais observamos é o que realmente não aparece. Régis Debrey afirma: “suporte é, talvez, o que se vê menos e o que se conta mais”. Reforça sua lição: “na civilização concebida como sistema de produção de vestígios, ele não representaria a força produtora, nem a fonte de energia, mas sim matéria-prima. Nem mais nem menos” (Curso de midiologia geral, tradução de Guilherme João de Freitas Texeira, Vozes, 1993, p.207).

3.1.Utopias e Iconização

Importante consequência da privatização da polis e desintegração da esfera pública foi o fim das utopias e a iconização da politica. Nesse final e começo, onde a civilização da imagem coloniza todas as esferas, a politica, como tudo em geral, passa pela acusação de ser manipulada segundo interesses econômicos e financeiros, se transformando em mercadoria, na verdade, um quase-produto, porque existe uma diferença entre o político e o produto industrializado: o político fala, enquanto a mercadoria pode permanecer muda numa gôndola, porque um intermediário deve falar por ela, evidenciando suas vantagens.

Normalmente, os processos de mediação encaminham esse quase-produto a uma iconização. Na atualidade, esse produto que fala não funciona vendendo ilusões, fazendo promessas, nem firma suas propostas avalizando no futuro a consolidação de grandes projetos utópicos. Tem em vista que a ação de iludir, no final, resulta em frustações, como igualmente as utopias que, ao contrário das ilusões, são mensuráveis, mas não exequíveis, redundando, como a ilusão, em retumbantes fracassos.

Na nova compreensão desse mercado, o grande objetivo não é trair o consumidor, mas estabelecer com ele uma relação de adultério mais ou menos consentida, com certa cumplicidade, em comum acordo, para que todos os interessados, emissores de imagens, donos do capital e consumidores, afinal, possam permanecer equilibrados entre o desejo e o engano, com a possibilidade de que, de algum modo, todos saiam ganhando.

Marcado o fim das utopias, das grandes narrativas, dos heróis e vilões, surgem os índices: os vestígios de um fato ou fenômeno. As marcas e pegadas na neve ou na cinza de uma fogueira reconstituem uma passagem. Também a palidez de uma mulher pode ser indicador de gravidez, enquanto um punho cerrado deve ser interpretado como um índice de ameaça. Ou de luta partidária.

Em todos esses casos, o signo indicial aparece como manifestação direta do produto manifestado, constituindo uma amostra ou segmento, extraído de uma interação, algo como um efeito mecânico governado por uma causa, dentro de um processo em que as partes são compartimentos de um todo que, por sua vez, não se deslocam desse corpo maior, como o sumário de um livro que é dividido em capítulos, subtemas e anexos.

O índice se agarra ao todo vasto e completo, o ícone também, mas sem ligamentos. A relação da coisa denotada, que é designada pelo índice, se efetua por semelhanças ou a partir de continuidade, perfazendo sobre ele uma analogia em sentido amplo. Diferentemente, o ícone não faz parte intrínseca do fenômeno, sendo por essa razão criado artificialmente. Vamos à prática: se o Santo Sudário fosse autêntico, imune a qualquer dúvida, seria um vestígio, uma pegada, portanto, um índice. Como a peça está posta no campo sagrado, ela é ícone para a igreja católica, porque desloca das partes de seu enredo, se afasta de sua gênese e história, para sobreviver por si só, ganhando autonomia.

Para Lemke, o “povo” como ícone afasta-se do caminho que levaria ao problema da legitimidade democrática, caindo-se no abismo de uma retórica ideológica” porque a iconização consiste, especificamente, em “abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ a população, em mitificá-la, ou ainda em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência do Estado.

Noutros termos, o sentido icônico desse conceito objetiva “abandonar o povo à sua própria sorte”, sequestrar “a população de sua existência concreta, em transformá-la num mito, em considerar falsamente essa noção como algo de veneração e em designá-la, dessa forma, tal como uma entidade “protetora abstrata, sem ofensividade. Melhor explicando: em termos genéricos, a iconização reside no esforço de “unificar em ‘povo’ a população diferenciada” e, nessa ação uniformizada, retirar bons resultados midiáticos.

Ainda na concepção de Lemke, “utiliza-se esse conceito para homogeneizar grupos sociais que, na realidade, são extremamente plurais e heterogêneos. Mas, isso tudo se faz em moldes linguísticos e com fins estratégicos, sobretudo para manter o status quo das estruturas sociais, utilizando-se iconicamente o conceito de povo com vistas à perpetuação dos poderes da classe dirigente” (Wilson Coibra, Iconização do povo brasileiro no brado Ipiranga, Cidp.pt/ revistas/ rjlb, acessado em 16/05/2023).

A exata transformação do índice em ícone é a maior expectativa desses “quase produto”. O “lulismo” é bem maior que Luis Inácio da Silva, tal como o “trumpismo” ultrapassa o Donald Trump nos EEUU. Mas, completamente deslocados do índice, muitos produtos relacionados a serviços tomam em seus nomes de fantasia os mesmos de artistas consagrados. Em New Orleans existia um restaurante onde se exibia um show de jazz que era muito prestigiado pelos turistas. O local foi batizado como Fitzgerald, enquanto a banda que tocava nessa casa chamava-se The Kennedy.

A iconização cuida de um processo elaborado pelas mídias e seus eficientes instrumentos, o que, em outras palavras, constitui uma construção, um procedimento que, ao englobar imagem, escrita e opinião, desloca esse produto para outro patamar, a ponto de ser transformado em uma lenda, assim como aconteceu com o presidente Juscelino Kubitscheck, que fez Brasília em tempo razoável, momento em que muitos governantes queriam ser ele ou imitá-lo, e, se pudessem, utilizar a marca JK, também bradariam governar em 05 anos como se fosse 50.

4.DUAS NOTAS PARA CONTINUAR SEGUINDO

A primeira delas é que importantes substratos que ensejaram diversas teorias partiram da civilização da imagem que na sequência abordaremos. Mas são temas anteriores à globalização, com algumas direções padronizadas baseadas em tecnologias que apagam distâncias e reduzem custos, porém, ampliam e marcam novas práticas sociais.

A segunda diz respeito à máxima de que a nova ponte não enterra o meio, no sentido de que as velhas tecnologias podem até se tornar obsoletas, mas não absolutamente inservíveis. Essa criação de novos espaços não apagou a presença de antigos políticos, com seus antigos vícios e distorções, mas eles acabaram se adaptando aos novos tempos. Na verdade, criou para os mesmos sujeitos outros cenários que se iniciam em diferentes processos históricos.

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.

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