Epidemia ideológica

Caminhando pela estrada, um sábio encontrou um vírus. Perguntou-lhe: para onde você está indo, vírus? O vírus respondeu: matar 10.000 (dez mil) pessoas naquela cidade. Passados alguns dias, o sábio encontrou novamente o vírus e perguntou-lhe: porque você matou 100.000 (cem mil) pessoas? O vírus respondeu: eu matei apenas 10.000; o restante morreu pela maldade da ideologia.

Desde sua campanha em 2018, Bolsonaro está muito focado em despertar as irracionalidades de seu eleitorado e da população em geral. Por um lado, aproveitando-se da religiosidade popular estrutural da cultura brasileira, e por outro, alimentando continuamente em suas mídias sociais o ódio da população contra seus adversários políticos, mais precisamente o Partido dos Trabalhadores (PT), pegando carona no clima de guerra híbrida – midiática, parlamentar, judiciária – desenvolvida, em 2013, pelas elites contra a presidente Dilma Rousseff para consolidarem o Golpe de Abril de 2016. Dessa forma, ele soube canalizar o rancor despertado na população pelos operadores do Golpe, ocupando o vácuo deixado por essas elites que não souberam conquistar o retorno ao poder pelas mãos do PSDB, conforme o roteiro planejado, para desmantelar as conquistas do Estado de Bem-Estar implantadas pelos governos do PT (2003-2014), a fim de implantarem seu projeto ultraliberal.

Agora no caso da pandemia da covid-19 não está sendo diferente. O tratamento que o capitão prescreve é eminentemente ideológico, *aguçando na população o medo da perda econômica e, no mesmo movimento, relativizando o valor de vidas humanas considerando-as descartáveis*, deixando transbordar o obscurantismo moral do qual é portador juntamente com o das lideranças que o apoiam, representantes de diversos setores da sociedade: forças armadas, mídia, capital financeiro, capital agrário e religioso.

A ideologia tem como objetivo a ocultação, mistificação ou falsificação, buscando alimentar nas pessoas uma falsa consciência da realidade. *O que se opõe à ideologia é o pensamento crítico e científico*; por isso sofre ataque sistemático do governo bolsonarista e de suas redes sociais. Os grupos hegemônicos são os que têm interesse em ideologizar a realidade social para ocultar as contradições das quais alimentam seus interesses e tiram suas vantagens privadas. Não é à toa que Bolsonaro está cercado por um pequeno grupo de ideólogos que são *profissionais da simulação* a lhe ditar como agir. A ideologia esconde mostrando, as coisas são mascaradas por meio do seu contrário: a falsidade sob aparência de verdade, a contradição sob aparência de harmonia, o relativo é apresentado como absoluto, o histórico como eterno, o cultural como natural. Quando se consegue apresentar os interesses desses grupos como justos e benéficos para todos (a privatização do sistema de saúde, por exemplo), a sociedade além de os legitimar, garante a sua reprodução.

Tomemos o caso da pandemia: o que representa a chegada do corona-vírus nas favelas do Brasil onde metade das habitações não possui sequer água encanada em casa? De onde decorre a pergunta: Por que não possuem água encanada em suas casas? A mídia hegemônica de televisão, que é concessão pública, em vez de produzir telenovelas, das 18h. às 22h, juntamente com a rede pública de televisão deveriam desenvolver um trabalho cientificamente sério, de forma sistemática e com profundidade jornalística, capaz de revelar as contradições da sociedade brasileira materializadas no sofrimento e exploração a que são submetidas esses milhões de famílias brasileiras faveladas. Como a sociedade será capaz de compreender a complexidade da vida dessas pessoas que vivem em situação limite, compreensão que lhe permita inspirar uma renovada crítica às expressões da lógica da exceção que persiste no Brasil, sem uma aproximação comunicativa honesta e questionadora dessa realidade? Qual a sinalização concreta dada por Bolsonaro durante o seu primeiro ano de governo em relação a isso? Nenhuma. Pelo contrário, apontou o uso de armas como solução mágica para a problemática social urbana e rural.

Primo Levi, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, alerta em seu livro “Os Afogados e Os Sobreviventes” (1986), que poucos países podem dizer-se imunes em relação a uma futura onda de violência, gerada pela intolerância, por razões econômicas, fundamentalismo religioso, pela ideologia política centrada na sede de poder. É preciso desconfiar dos mitos, dos profetas, daqueles que falam palavras que não encontram suporte em seus atos nem em suas razões. É preciso mudar, despertar nossos sentidos, nossa postura em meio ao mundo.

A covid-19 vem desnudar a exploração pela qual populações inteiras são submetidas pelo sistema capitalista, confirmando uma sentença enigmática e feroz: “a quem tem será dado; a quem não tem, será tirado”. Como alterar essa lógica?

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .