Relatório da Organização das Nações Unidas-ONU, publicado no final do mês de abril, assevera como irresponsáveis as políticas econômicas e sociais do Brasil, durante a pandemia, em razão das restrições dos investimentos públicos, impostas pelo teto dos gastos, fixado por uma emenda constitucional de 2016, para os próximos 20 anos, mesmo tendo o Congresso Nacional flexibilizado esse teto com aprovação do chamado orçamento de guerra para atender aos gastos com o combate à covid-19.
Conforme afirmação da ONU, essa medida submete a risco a vida de milhões de pessoas. E a essa desumana imposição imposta por essa lei, se somam a negligência e a incapacidade demonstradas pelo Ministério da Saúde – até hoje sem um cientista da saúde ou mesmo um profissional da área no seu comando – no que se refere à aplicação dos recursos do seu orçamento, porquanto, de acordo com parecer analítico do TCU, durante o mês julho, foi aplicado menos de um terço do valor total, enquanto no mesmo período médicos denunciavam a falta – até – de anestésicos para entubar os pacientes infectados pelo coronavírus, e que as pessoas estavam morrendo por falta de medicamentos nos hospitais.
Embora o governo negue todos esses fatos, não é exagero afirmar que tal ação com nítido viés eugênico, e gestão desidiosa, certamente, contribuiu para que hoje tenhamos atingido a vergonhosa, triste e doída marca de quase 120 mil mortes causadas pelo coronavírus. Isto situa o Brasil na mórbida e entristecedora colocação de segundo País, em maior número mortos no ranque mundial. Aqui deve ser lembrado o fato de que omissão e negligência configuram crimes de responsabilidade, cabendo investigar.
Essa grave realidade impõe aos governos em escala planetária, em particular para a comunidade médico-cientifica brasileira, universidades e empresas, bem assim para os formuladores do pensamento econômico do País, o redesenho de um modelo para a retomada do desenvolvimento, com foco na economia da saúde, que articule sua ampla e diversificada cadeia produtiva, além dos fatores ambientais – como esgotamento sanitário e água tratada – quase sempre ignorados, pelo menos entre nós.
Na opinião de Carlos Grabois Gadelha, que lidera o grupo de pesquisa em Desenvolvimento Inovação e Complexo Econômico–Industrial da Saúde-SEIS, da Fiocruz, “[…] o coronavírus expôs de modo dramático que as dimensões do desenvolvimento são inexoravelmente vinculadas, sendo ao mesmo tempo um erro e uma falta de visão a oposição nefasta e perversa entre economia e saúde”.
Deve ser lembrado o fato de que essa visão reducionista sobre saúde e desenvolvimento econômico não é nova, e tem origem na concepção formulada pela própria Organização Mundial da Saúde-OMS, em articulação com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional-FMI, e constante do relatório que analisa a relação entre economia e saúde, publicado ainda em 2001 – o Macroeconomicsand health: investing.
Mesmo reafirmando que a saúde é um bem e um direito fundamental da pessoa, sob a óptica da economia, a concepção difundida pela OMS, nesses últimos 20 anos, reduz o elo entre saúde e desenvolvimento, para uma perspectiva em que o propósito seria, tão somente, a geração e o fornecimento de capital humano para o mercado de trabalho – quando, na verdade, essa relação tem dimensões políticas, econômicas e sociais, muito além de assegurar que todos experimentem uma vida saudável e produtiva.
O filósofo e professor de economia Amartya Sen, de reconhecida atuação na formulação de políticas em favor dos menos favorecidos em todo o mundo, leciona que “[…] a saúde é fator essencial à liberdade de escolha”, associando o desenvolvimento à liberdade dos indivíduos, no pressuposto de que “[…]pessoas saudáveis são mais livres para escolher”. Malgrado seja incontestável essa concepção, também é imperioso reconhecer que não há oportunidades de escolha em um mundo de excluídos.
O debate sobre saúde, numa perspectiva de desenvolvimento econômico, impõe aos governos, aos órgãos de regulação, à iniciativa privada com a força dos seus laboratórios, sua indústria de fármacos, dentre outros, a compreensão desse setor como estratégico para que tenhamos uma nação saudável, economicamente viável, e sensível diminuição dos seus custos, para um melhor atendimento ao cidadão.
No contexto da crise que o mundo agora enfrenta, provocada pela pandemia, as lições aprendidas com a história devem servir de referências para identificação de oportunidades econômicas.
Quando se examinam os períodos de guerra, por exemplo, constata-se que a indústria bélica é fator de geração de riquezas em seus países, com os altos investimentos na produção e comercialização de armas, assim como no desenvolvimento de tecnologias, inclusive com a transferência de suporte aos aliados menos desenvolvidos, o que evidencia uma espécie de ‘solidariedade’ de guerra.
Por ironia, no início da peleja travada para combater o coronavírus, quando significativa parcela das populações em todo o mundo, literalmente, quase parou de respirar pela falta dos equipamentos de ventilação mecânica, (respiradores), e a humanidade precisou da solidariedade – especialmente das nações mais desenvolvidas – seus governos expuseram para o mundo sua face mais perversa e egoísta, comprando e até confiscando quase toda a produção mundial de respiradores e EPIs, deixando à mingua as sociedades mais pobres,sem ter como cuidar dos seus doentes.
Olhando para a nossa realidade, deparamos outra ironia, ainda mais difícil de compreender e aceitar, pois o Brasil, que fabrica e exporta aviões de alta tecnologia, para equipar as forças militares e aviação civil de vários países, sua indústria não teve condições de produzir uma simples máscara na quantidade necessária as suas necessidades, forçando o governo federal e os governadores à importação desde a China, Índia e outros países. Esse exemplo é emblemático do espaço para o desenvolvimento da economia da saúde.
Como se percebe, o enfrentamento da crise e a construção dessa nova realidade ultrapassam os auxílios de renda mínima emergencial, que os governos do mundo inteiro – registre-se – tiveram que criar para acudir as massas de trabalhadores que perderam empregos, as pessoas da chamada economia informal, e, principalmente, o contingente de invisíveis, para permitir a sobrevivência desses durante a pandemia.
A precária infraestrutura em saúde, evidenciada pela covid-19, até mesmo nos países desenvolvidos, é reveladora de oportunidades para o fortalecimento da indústria do setor, e de suas cadeias produtivas, pela fabricação e comercialização dos vários insumos médico–hospitalares de alta tecnologia e inovação, bem como pelo desenvolvimento de vacinas e medicamentos.
Um leito de UTI, em seus vários graus de especialidades, para ser aprontado, necessita, desde equipamentos considerados triviais – com uma simples cama, colchões, e lençóis – a respiradores, monitores cardíacos, carros de parada, bombas de infusão, dentre outros, além de todos os insumos necessários ao seu funcionamento ininterrupto. Não é necessário ser médico para saber que nenhum país deve ficar na dependência de outros em um setor tão estratégico como este!
Na realidade brasileira, as condições e o potencial econômico para o fortalecimento de uma indústria moderna, tecnológica de alto valor agregado– como é a do setor da saúde – são ainda mais significativas, pois, mesmo com todas as deficiências, temos o SUS, que é o maior e o melhor sistema público de saúde do mundo, com sua enorme rede hospitalar em todo o País, atendendo a uma das maiores clientelas do Planeta, realizando tratamentos de alta complexidade, e sofisticados tratamentos em todas as áreas das especialidades médicas dispostas a sua população.
É consabido que a recuperação econômica no pós–pandemia guarda relação direta com as políticas ora implementadas pelos governos. Essas devem garantir que os trabalhadores não sejam demitidos, que os locatários não sejam despejados, que as empresas não fechem suas portas (no Brasil,segundo o IBGE, mais de 700 mil encerraram suas atividades, somando-se à enorme massa até então registrada mais 7,8 milhões de desempregados), para que as estruturas econômicas e comerciais sejam protegidas e preservadas.
Quando se examinam as estruturas econômicas dos chamados países de baixa renda, ou de economias emergentes, como o Brasil, deparamos uma realidade desoladora, para dizer o mínimo, pois,além de não terem condições de financiar o aumento de despesas, enquanto assistem à brusca diminuição das receitas pela perda de arrecadação provocada pela recessão, sofrem ainda com a fuga de capitais, deixando-os na dependência das subvenções e dos empréstimos da comunidade internacional.
O fator inusitado dessa crise gerada pela pandemia, que difere de outros períodos de redução da economia mundial, na história recente, é que ela é agravada pela inevitável necessidade da adoção de medidas restritivas para o controle e o combate ao coronavírus, como isolamento social e diminuição das atividades econômicas, com o sublime propósito de proteção e preservação da vida, gerando agudo rebatimento no aumento da pobreza e das desigualdades.
Vale revisitar o pensamento de Adam Smith, quando ele assinala que, “[…] a riqueza de uma nação se mede pela riqueza do povo e não pela riqueza dos príncipes”.
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