E SE O PRIMATA KUBRICKIANO NÃO TIVESSE PEGO AQUELE OSSO?

“Para conceber tudo isso, precisamos demolir pedra após pedra, por assim dizer, o artístico edifício da cultura apolínea, até vislumbrarmos os fundamentos nos quais se assenta.” (Nietzsche)

            Cena de 2001: Uma odisseia no espaço.

A territorialização do espaço passou sempre pelo saber/poder e é, neste raciocínio, que Stanley Kubrick assina o 2001: Uma Odisséia no Espaço. Desconstruiu a forma de pensar cinema para antes, durante e depois dele, se é possível tratar o tempo em antes e depois de algum fato. Afinal, nenhuma construção humana perturba mais o ser humano, e o coloca em crise, que o tempo. Sim, o tempo. O tempo como fator de crise e elemento a mensurar a duração das crises. Do tempo da ampulheta ao tempo do relógio digital o homem rendeu-se ao tempo da crise. A crise passa (elemento de tempo). Assim como o criador foi a criatura. As cenas iniciais do filme retratam a luta pelo espaço em um momento da História onde a escrita e a comunicação, como hoje as conhecemos, eram desconhecidas. A crise apresentada por Stanley Kubrick é presente no tempo por ser o elemento a modificar o homem no mundo contemporâneo.

A aparente distância entre o osso empunhado pelo macaco a quebrar outros ossos enquanto em sua memória (lembrança do tempo) passa a ideia de que aquele objeto inominado era, a partir daquele momento, uma extensão de seu braço, de sua mente, de seu corpo e o permitia fundar um novo tempo. Uma extensão que quando usada com precisão abatia animais para a alimentação do grupo do qual era partícipe e viria a ser líder. Não acreditamos que o primata kubrickiano tenha pensado em patentear o que acabara de descobrir. Não foram, pelo menos até o presente (tempo), encontrados registros no INPI ou em órgãos internacionais a exercer função correlata.

A invenção/inovação do primata kubrickiano transformou a técnica à época a partir da crise provocada no mundo cinematográfico. Se antes o contato físico era o único caminho para que o inimigo fosse abatido agora ela não mais precisaria tocar naquele a lutar pelo espaço ocupado em torno de um pequeno poço com água. O aproximar de outro grupo mostrava que a invenção/inovação, uso de um osso, era suficiente para demonstrar que o território havia sido delimitado por um saber/poder, como diria Foucault.

Na demarcação do território com a ideia de propriedade temos a cena onde o primata usa o osso e, ato contínuo, usa-o com força a bater com o objetivo de abater o grupo contrário. A técnica de ter uma extensão do físico somente foi possível com o pensar e, indo além, com o saber fazer. Em cena anterior o nosso macaco aparece com o olhar curioso sobre uma ossada e, de forma leve, quase simbólica, pega um destes ossos e começa a quebrar os demais. Percebe que as ossadas poderiam ter outra função.

Não existe registro nos institutos pesquisados se o primeiro primata a fazer uso do osso como extensão do corpo tinha clareza de seu ato. Necessário perceber que o objetivo da invenção/inovação aparece com sua utilização que, como em um passe de mágica, passa a ser em larga escala. Todos os membros do grupo passam a utilizar um osso para abater suas presas. Imperioso refletir que o primeiro a usar passa a ter o comando do grupo. Comando, palavra que passa a existir naquele exato momento, mesmo não estando escrita.

Inúmeras vantagens foram percebidas na invenção/inovação não patenteada até hoje. Problemas técnicos também foram percebidos à época que é de uma imprecisão temporal absurda tamanha sua distância. O primata kubrickiano logo percebeu que ossos menores e finos não continham a mesma força que ossos grandes e grossos. Passou, então, a separar aqueles que podia utilizar. Dos animais abatidos era retirada a carne como forma alimentar e, logo depois, separados os ossos grandes dos pequenos. Os grandes eram armas. Os pequenos desconsiderados.

O efeito técnico é imediato. A força física do primata kubrickiano foi aumentada com a empunhadura do osso em suas mãos. A facilidade com que animais eram abatidos e a concorrência formada pelos primatas não kubrickianos afastada. Não existe registro dos detalhes construtivos do osso em tela. Para que pudéssemos expor a parte construtiva seria necessário saber de que animal era aquele osso. Em um primeiro momento houve problemas operacionais, sim. Residiam na forma de empunhar. Deveria ser seguro no meio ou na ponta? Era a pergunta feita à época. Logo resolvida com a decisão de que empunhando a partir da ponta do osso a extensão física era maior. Problema resolvido.

Os poucos registros existentes demonstram que a invenção/inovação foi utilizada como defesa e, posteriormente, como algo possível de viabilizar um ataque a outros animais e primatas não kubrickianos. Logo, o grupo dos primatas kubrickianos percebeu que quanto mais animais fossem mortos mais ossos poderiam ter em mãos. E desta forma não haveria problemas se um osso viesse a quebrar durante uma batalha, por exemplo.

Utilizar o filme 2001: Uma Odisséia no Espaço como caminho para discutir patentes é mais do que um desafio. É a percepção de que nem todas as invenções/inovações foram patenteadas, caso do osso dos primatas kubrickianos. E, para, além disso, a patente como forma de poder, de controle territorial, de exercício do poder político como viria a literatura a discorrer sobre.

É relevante mencionar que o primeiro primata kubrickiano a usar o osso passa a controlar o grupo. Isto significa, em outras palavras, o controle político de um grupo de macacos até então com a vivência ordenada pela convivência na proteção de um ao outro. A invenção/inovação do osso trouxe consigo a disputa. Esta passou a ser entre grupos e depois dentro do próprio grupo.

A área territorial onde residia o grupo passa a ser controlada para manutenção do mesmo e como forma de evitar que outros grupos concorrentes viessem a matar sua sede junto a única fonte com água existente na região delimitada para filmagem por Stanley. Fonte que atraia outros animais que terminavam sendo abatidos para servir de alimento e seus ossos reaproveitados na condição de armas.

O osso do primata kubrickiano trouxe, também, outra forma de comunicação/informação que não apenas grunhidos. Segundo Kurz, informação tanto pode ser “o som de uma buzina, a campainha de um despertador, as oscilações da bolsa, a previsão do tempo” (2002:14). Enquanto o conhecimento se dá no processo de interação entre o que está fora (a informação) e o que se encontra em nosso ‘eu’, o que inclui o processo interno da reflexão. Para esse autor, “(…) vivemos numa sociedade do conhecimento porque somos soterrados por informações” (2002:14). Onde o conceito de inteligência da chamada sociedade da informação – ou do conhecimento – é modelado pela chamada ‘inteligência artificial’, ou seja, por máquinas eletrônicas que simulam atividades do cérebro humano e tornam-se sistemas com vida própria.

Enquanto isso, e ao som de Danúbio Azul composta por Strauss, o osso jogado ao ar nos faz sair do mundo sem a noção de patente para o território espacial onde cada peça, cada nave, cada satélite tem um nome, um número, um significado e uma patente e continuam a delimitar o território espacial. O tempo da viagem do osso, do tempo da música de Strauss ao tempo de navegação no espaço o homem continua criando inovações na arte de delimitar espaços. Enquanto este texto estava a ser digitado inúmeras novas formas de escrita foram pensadas.

O filme assistido por milhões de pessoas e aplaudido por um número menor dos que o assistiram carrega consigo outro momento sonoro que tem como elemento a obra filosófica de Nietzsche. É perceptível que, como afirmou o filósofo alemão, “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.”. O caos vivido à época do aparecimento e uso do osso pelo primata kubrickiano permitiu que olhasse a aurora sem medo e de forma ordenada. Nosso primata não foi discípulo de Rousseau, pelo contrário. O primata do qual falamos viveu bem antes que o pensador francês viria a pensar sobre o Contrato Social.

A segurança trazida pela extensão do corpo a partir do uso do osso retirou do primata kubrickiano sua própria liberdade. E aqui nos valemos de Bauman ao afirmar que o homem ainda não encontrou o equilíbrio entre a liberdade e a segurança. Nosso primata havia descoberto isso quando fez uso do osso como extensão/arma.

Milênios depois…

A história continua a mesma.

A humanidade busca o aprisionamento do saber como caminho ao exercício do poder para construir territórios que serão usados por poucos na busca de afastar a concorrência que é formada, diga-se de passagem, por outros humanos. A evolução do conhecimento humano levou o homem a construir um sistema protetivo em torno de suas invenções/inovações. O problema é maior porque este homem não conhece Strauss, Nietzsche, Bauman e nem o primata kubrickiano.

E se o primata kubrickiano não tivesse pego aquele osso?

 

Medeiros Júnior

José Flôr de Medeiros Júnior é Mestre em Direito Econômico - PPGD/Unipê e em Ciências Jurídicas - PPGCJ/UFPB, Pós-Graduado em História (UEPB), graduado em Direito - Unifacisa – PB e em História - UEPB. Professor de Direito e Consultor em Educação. Autor de livros, capítulos de livros e artigos sobre meio ambiente, cidadania e o tempo enquanto discussão filosófica. Apaixonado pela literatura com especial olhar aos escritos de Dostoiévski, Camus, Kafka, Borges, Saramago, James Joyce, Mário Vargas Llosa, George Orwell, Umberto Eco. Leitor de Nietzsche, Foucault e Certeau, mas prefere conversar com Walter Benjamin.

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Medeiros Júnior

José Flôr de Medeiros Júnior é Mestre em Direito Econômico - PPGD/Unipê e em Ciências Jurídicas - PPGCJ/UFPB, Pós-Graduado em História (UEPB), graduado em Direito - Unifacisa – PB e em História - UEPB. Professor de Direito e Consultor em Educação. Autor de livros, capítulos de livros e artigos sobre meio ambiente, cidadania e o tempo enquanto discussão filosófica. Apaixonado pela literatura com especial olhar aos escritos de Dostoiévski, Camus, Kafka, Borges, Saramago, James Joyce, Mário Vargas Llosa, George Orwell, Umberto Eco. Leitor de Nietzsche, Foucault e Certeau, mas prefere conversar com Walter Benjamin.