DITADURA NUNCA MAIS! AMEAÇA NA REFLEXÃO DE “AINDA ESTOU AQUI”

Sou da época em que a exibição nacional trazia gravado na legenda: Cinema ainda é a maior diversão. A gente ia a uma sala de projeção (normalmente da organização Luís Severiano Ribeiro) para depois discutir o filme, fato cultural marcante naquele momento.

Não importava se era denúncia social ou mero entretenimento, o cinema era brecha para refletirmos sobre temas de nossas vidas nos diversos espaços (nos colégios, nas repartições públicas, nas praias e nos bares).

Hoje, sinto algo parecido revigorando a discussão como função social maior da arte. Não se fala outra coisa, em senão no filme que arrebatou mais de dez minutos de aplausos no Festival de Veneza.

Tive dificuldade em encontrar poltrona para assistir “Ainda Estou Aqui” – direção de Walter Salles, estrelado por Fernanda Torres, participação de sua mãe Fernanda Montenegro — mesmo comprando ingressos com antecipação. Lembrei com saudade as longas filas em frente ao Cine São Luís nas temporadas de grandes estreias.

Desde a avant première, a película já foi vista por mais de um milhão de pessoas em pouco mais de uma semana.

Festejado como capaz de arrebatar um Oscar e odiado  por quem que gostaria que lançamento fosse  boicotado — como anunciado pelas redes sociais, felizmente, não passou de um delírio, fake News, curioso “fla-flu ideológico”.

É a mentira que a extrema direita teima em promover, como se fosse um filme patrocinado pela esquerda, como propaganda comunista, com o selo do Partido dos Trabalhadores, ou mesmo da Rede Globo de televisão.

O filme é político porque simplesmente os personagens são políticos e o tema ainda carece de debate e explicação.

Bem, a narrativa do filme é a história da família de Eunice Paiva, como a de muitos brasileiros que, por pensarem diferente do golpe militar de 1964, com atuações práticas — seja reflexa em tempo passado ou no presente — foram presos e não voltaram nunca mais para os seus lares [1].

Em determinada cena, quando Eunice Paiva pergunta ao personagem Baby Bocaiuva (Dan Stulbach), amigo e companheiro de trabalho de seu marido, o que poderia acontecer aos desaparecidos políticos, ele responde que alguns teriam sido enterrados em valas clandestinas como indigentes; outros, atirados ao mar. O diretor Walter Salles não foi nada sutil, em outras cenas, ao registrar voos rasantes de helicópteros sobre as praias da zona sul do Rio de Janeiro, enquanto a própria personagem principal relaxava de suas agudas tensões sobre aquelas águas generosas do Oceano Atlântico.

Digo parecido com a histórias de muitas famílias porque no fascismo, caracterizado por sua violência cruel (momento em que os seus signatários imaginam a tortura como forma redentora, sem restrições éticas e morais), o roteiro inquisitivo contra adversários é semelhante. Lembro-me como o meu pai foi preso.

Era julho de 1964 e a notícia de que ele fora recolhido a uma das celas do 23° BC veio pelo telefonema de um amigo, na verdade o diretor do jornal onde trabalhava, que consolava minha mãe ao dizer que não era nada grave: meu pai deveria responder algumas perguntas de rotina e,  após as respostas, voltaria para casa.

O “inquérito” contra meu pai foi aberto para averiguar o seu passado de comunista e possíveis continuidades com a causa esquerdista. Mas, junto ao seu dossiê havia uma carta comprometedora assinada por um certo Durval que deveria ser esclarecida aos inquisidores. A firmeza do depoente, a forma clara e objetiva da contradita, sem expressar medo, duvida ou temor, afastou preliminarmente qualquer possibilidade de ter sido autor daquela missiva, por um detalhe muito simples: a escrita continha erros em português, problemas com a concordância verbal, não fosse uma caligrafia malfeita, elaborada por alguém que não conhecia “nem de alfa, nem de beta”, portanto, analfabeto,  e que não correspondia em absoluta verdade com perfil do veterano jornalista, cuja formação humanista, experiencia com textos e leituras devido ao oficio que abraçou, lhe rendera um estágio com o poeta Carlos Drummond de Andrade, ironicamente financiado pelo próprio PCB, na época de seu exíguo período de legalidade.

Não foi só: a aprovação em certames públicos. O primeiro,  junto ao Serviço Nacional de Combate à Febre Amarela (SNFA), às expensas do Ministério da Educação e Saúde [2], após deixar o serviço militar na patente de Cabo da Aeronáutica. Por ter altura mediana, exercia encargos burocráticos, emitindo ofícios e outros expedientes semelhantes, além do cargo de Comunicador Social da Universidade Federal do Ceará, também conquistado por concurso,  pelo qual se aposentaria mais tarde, concomitantemente ao exercício diário do jornalismo, como editorialista, trabalhando com quase todos órgãos de imprensa do Ceará. Todos esses elementos constituíam um arco de  informações que não “batia” com o que lhes queriam incriminar. A não ser que o objetivo fosse intimidá-lo, humilhá-lo, ou esperassem que ele se traísse, rebaixando-o perante o governo militar  que se instituía em permanente estado de guerra, de sangue e terror contra adversários.

A literatura, na altura de mais de duas décadas de regime militar, é rica nesses registros autoritários. Muitos filmes já mostraram horrores e quão sangrenta foi a ditadura. Em “Ainda Estou Aqui”, a violência pareceu ainda mais intensa, sutil, doída e silenciosa. Eunice Paiva e seus cinco filhos somente souberam o que aconteceu de verdade com o principal “homem da casa”,  25 (vinte cinco) anos depois, quando Rubens Paiva (Selton Melo), ao ser preso, não resistiu a uma sequência de torturas, seguida de violência cruel, inapelável, estúpida e insana. O ex-deputado teria que delatar companheiros, segundo algumas versões, precisava explicar cartas interceptadas do Chile, na mesma proporção em que se buscavam os culpados pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. A negociação pela vida do diplomata libertou pelos menos 15 pessoas que haviam sido presas, entre líderes estudantis, professores, jornalistas e militantes de esquerda [3].

No filme, Eunice e sua filha menor de idade foram também presas nas dependências do DOI-CODI, para que elas indicassem pessoas que a polícia secreta havia levantado, as mesmas que eram  amigos da família Paiva, então exibidas em dossiês de fotografias, enquanto essas detentas, isoladamente, de forma autêntica e corajosa, apenas identificaram elas próprias.

Felizmente, meu pai, depois de duas semanas, as mesmas duas semanas que durou a detenção da esposa do ex-deputado, num desses dias tão comuns como os outros, foi dispensado. Liberto, estava de volta e agradecido pela solidariedade dos companheiros de imprensa.  Recolheu minha mãe e os seus filhos que estavam na casa de um amigo. Chegou triste. Cabisbaixo, com a pequena bolsa quase vazia, contendo pijama, calção, escova e pasta de dente. Faltava uma toalha posta inadvertidamente pelo meu tio, cunhado de meu pai, colocada entre seus pertences que lhes causou momentos vexatórios [4].

No dia seguinte de sua liberdade, tomou café e viu os cinco filhos menores seguirem para o ensino fundamental da escola do bairro. As meninas ainda não haviam nascido. Foi trabalhar na redação do jornal como se nada tivesse acontecido. Teve de volta sua rotina. Fumava três maços de cigarros por dia. Não relaxava à noite. Devia ter visto muita coisa abjeta. Ouvido gritos e sussurros. Valente como sempre, desde os tempos de juventude e militância [5] permitiu que um psiquiatra lhe aplicasse rigorosos choques elétricos. A vida seguiu seus passos naturais e convivemos, com ele por três décadas de contato comum e de felicidade familiar até sua morte, vítima de câncer na próstata aos 70 anos.

Talvez a reflexão desse filme passe pela seguinte pergunta:  se meu pai não tivesse voltado salvo, com vida, onde estaríamos? Então, é um filme sobre uma família cujo chefe desapareceu do nada, um drama contado com simplicidade, mas com repercussão universal. Mesmo havendo especificidades sobre a história do Brasil, produz uma atenção especial de qualquer nacionalidade. Por isso, não é surpresa que a boa acolhida do filme tenha sido global, a ponto de ser sempre muito aplaudido no exterior, nos festivais de cinema em que foi exibido, causando sentimentos e emoções fortes.

O fato é que Eunice era uma dona de casa de classe média comum e feliz, mas tudo mudou de repente. Rubens Paiva, seu marido, então deputado federal cassado, foi levado por militares à paisana, e sua casa foi ocupada por agentes da repressão, com o objetivo de controlar as informações.  Eles  passaram a interagir com as crianças, matando o tempo com jogos, o que foi surreal, absurdo mesmo, como se aguardassem o retorno do ex-deputado, mas, certamente, por erros e. excessos da repressão, nunca mais voltou.

Seja como for, o fato é que, com 42 anos, a brava mulher teve que se reinventar para criar os cinco filhos, administrar a casa, buscar a verdade sobre o desaparecimento do marido, formando-se em direito, transformando-se em advogada de renome internacional (especializada em causas indígenas), tendo também que enfrentar o grave acidente que deixou seu filho Marcelo [6] tetraplégico no final de 1979. Uma fortaleza incomum, pois sempre evitou chorar na frente dos filhos, mesmo em meio a tantas  e tão severas adversidades.

Do ponto de vista estético, não há o que dizer das atuações fantásticas de todo o elenco do filme, lembrando a direção de arte e de figurino tão minuciosas que nos transportam realmente ao tempo e ao espaço daqueles eventos, mesmo sem ter vivido naquele Rio de Janeiro paradisíaco, da alegria, do desbunde, contrastando com a ameaça de um clima pesado que pairava no ar a todo segundo, os anos de chumbo. Até para quem aparentemente acreditava não ter tantas razões para sentir receio nenhum, porque não tinha nada a ver com a “revolução”, muito menos com a tomada do poder pelos militares e suspensão dos direitos fundamentais dos brasileiros.

É certo que muitos filmes já mostraram os horrores da ditadura instalada pelos generais. Mas, em “Ainda Estou Aqui”, a violência parece mais intensa, porque essa mulher, na excelente interpretação de Fernanda Torres, pode apenas imaginar o que aconteceu com seu companheiro. A questão é que a imaginação nos leva muito além do que o cinema tenta materializar, como as cenas últimas de Eunice (Fernanda Montenegro) já portadora de Alzheimer, retorcendo angústias ao ver as imagens do marido desaparecido, silenciosa, sem esboçar qualquer palavra, um tanto destruída, diante da família, com as filhas, genros, noras e netos, para que muitos reflitam, especialmente aqueles que flertam com o fascismo e admitem a ditadura como uma “época de ouro”, proclamando a infeliz ideia de retorno e viabilidade.

O trágico em tudo isso é contado (visto) com evidentes contrastes entre luz e sombra, águas calmas, mares revoltos, céus pesados, com passagem dos helicópteros, nos transportando a um ambiente de luto, velório sem morto, sem presenças, nem corpo para enterrar, dentro de uma casa agora triste, como determinaram os agentes infiltrados na residência,  com portas cerradas, janelas e cortinas fechadas, no dia em que um pai sumiu, nascendo ali um abismo profundo,  sem correção, sem rumo, com uma mulher valente, uma mãe precisando segurar a família e o mundo que, com a injustificável perda do marido, se desabara sobre seus ombros.

Talvez a cena mais singela do filme é a que marca a morte do cachorro Pimpão, atropelado em frente à casa da família Paiva. Ali, reunidos em torno do animal de estimação, as crianças choram sua partida e lhes rendem homenagem. Todos os filhos de Rubens cavam com as próprias mãos uma cova possível no jardim para enterrar o querido animal, então envolvido com um cobertor, quando não puderam até hoje fazer esse simples cortejo do próprio pai.

“Ainda Estou Aqui” é baseado no livro autobiográfico que leva o mesmo nome, de autoria de Marcelo Paiva, único filho do casal, pois a família se constituía de mulheres, e resulta da afirmação de sua mãe, quando recobrava a memória já em estado avançado do Alzheimer e dizia estar ali. Também pode designar que a ditadura ameaça sua volta com o avanço da direita em todo mundo. Depois de tudo que aconteceu de pior,  ainda ela está aqui.

Há quem defenda que o título do filme quer expressar outros significados: Rubens Paiva está sempre presente. Mas a “Ditadura Nunca Mais” também.  Ele ainda está aqui, porque, afinal, jamais foi encontrado e o seu drama não teve desfecho, nem indicação de responsáveis. Eles são os mesmos que ainda estão aqui, rondando a democracia. O fato de Rubens ainda estar aqui demonstra que precisamos reverberar sua imagem como um verdadeiro brado de resistência e defesa da democracia e dos direitos humanos.

________________________________

Notas:

[1]  Só para se ter uma ideia, segundo levantamento realizado pela

Comissão Nacional da Verdade, entre 1946 e 1988 desapareceram 434

opositores aos regimes autoritários que se instalaram no Brasil, sendo que, dentre milhares que desceram os porões da ditadura militar,

380 foram mortos após a “revolução” de março de 1964, aludido por

diversos historiadores não como revolução, mas como golpe de estado.

[2] A Comissão Estadual da Verdade esclareceu que Durval Aires foi

desligado do serviço público simplesmente porque os diretores do SNFA não queriam comunistas em seus quadros e assim o demitiram sem processo administrativo algum ou pagamento de verbas trabalhistas.

[3] Entre os nomes mais conhecidos, estão José Dirceu, Luís Travassos,

Vladimir Palmeira, Flávio Tavares, Fernando Gabeira, Ricardo Vilas

Boas, Vera Silva Magalhaes, Gregório Bezerra e Franklin Martins.

[4]  Segundo o próprio Durval, a toalha, com um tecido fibroso de

algodão, estampava detalhes festivos em Havana, marco comemorativo da

Revolução Cubana, o que seria  uma prova incontestável, difícil de ser

negada a sua dedicação à causa socialista e por certo lhe incriminaria

de vez, evidencia que consumiu vários dias em desfiá-las com os

dentes, dando descarga nas fibras, com sutileza para não despertar

atenção aos

militares sentinelas.

[5]  Na juventude, Durval Aires, com Pompílio Diniz, na madrugada de uma

sexta para sábado nos anos 50, ergueu e fez subir a bandeira vermelha

do partido comunista:  martelo e foice cruzados no frontispício da

Escola Militar de Fortaleza. Mais tarde, enfrentou uma cavalaria e restou desmaiado em virtude de uma coronhada de um fuzil ou de uma baioneta após uma luta depois do assassinato do sindicalista Jaime Calado pela  polícia getulista, na Praça José de Alencar em frente ao Teatro que leva o mesmo nome.

[6] Marcelo Rubens Paiva é jornalista, dramaturgo e escritor, tendo

publicado Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui recentemente lançado,

levado a lume pela editora Afaguara

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.