DISSONÂNCIAS NA FESTA

Na emocionante encenação do povo subindo ao poder, ninguém ligou para os lanceiros coloniais perfilados, com uniformes idealizados pelo integralista Gustavo Barroso, formando um corredor, enquadrando o cortejo, tipo garrote castrense.

A mulher negra e pobre, apondo a faixa presidencial, parecia dizer: tua lança feriu os meus, mas não me intimidas!

Nos ministérios, discursos de lavar a alma de quem amargou seis anos de implacável ofensiva contra a dignidade humana e a honra nacional. Sílvio Almeida, Nísia Trindade, Flávio Dino, Luciana Santos, Camilo Santana, Cida Gonçalves, Wellington Dias, Marina Silva… todos alimentando a vontade de futuro promissor.

A composição heterogênea não esmaeceu a impressão de um país que volta a sorrir. Os moderados Fernando Haddad e Simone Tebet mantiveram o clima. Alckmin apontou a perspectiva do desenvolvimento e da industrialização.

A esperança foi injetada na veia. Os lutadores pela democracia lacrimejamos alegres.

Já um privatista presidindo a Petrobrás… Por que entregar-lhe a empresa que pode afetar positivamente a vida brasileira? Lula declarou o fim das privatizações, mas o destino da empresa essencial persiste obscuro.

A entrega da inteligência de Estado a um militar… Trata-se de atividade indispensável à condução do Estado e à sustentação do governo! O general escolhido trairá seus camaradas que, em “aproximações sucessivas”, há mais de um século desbancam governantes?

Em matéria de dissonâncias, a mais cabreira ocorreu na Defesa. O ministro apresentou-se como “representante” das corporações armadas. Jogou às favas a soberania popular constitucionalmente assegurada. Naturalizou movimentos criminosos diante dos quartéis, enalteceu seu antecessor (um general que tentou melar as eleições) e garantiu a continuidade de orientações estratégicas que não defendem o Brasil.

As solenidades de posse de José Múcio e do novo comandante da Aeronáutica ignoraram acintosamente o comandante supremo das Forças Armadas. Nenhum oficial pronunciou o nome de Lula. Enalteceram suas próprias figuras e santificaram suas corporações.

O poder político continua sem perceber a incompatibilidade entre a construção de um país democrático e soberano e as estruturas orgânicas e funcionais do Estado, com destaque para seus instrumentos de força.

O poder político imagina que tais estruturas se movem apenas em busca de boquinhas, de desígnios pequenos, da pura vontade de tutelar. Considera, ingenuamente, que tudo estaria resolvido com o afastamento de oficiais de cargos públicos e com “mudanças nos currículos” de escolas militares.

Não ousam admitir que o Estado não representa a vontade geral: foi concebido para manter a escravidão, o baronato patriarcal e o enquadramento do país à uma ordem internacional imposta pela potência mais poderosa.

As corporações armadas do Estado brasileiro nunca o traíram. Sempre que o perceberam ameaçado, agiram com vigor. Sua missão permanente foi e persiste sendo o sufocamento de rebeldias ou mesmo de mudanças brandas. Daí os enfileirados não sentirem remorso com as atrocidades que praticaram. Daí insistirem em efemérides que ressaltam conflitos entre os nacionais.

A preservação das estruturas militares brasileiras tal como estão é incompatível com o combate à pobreza e ao racismo. Sem juventude pobre e sem arrimo, sem negros inferiorizados, o sistema de recrutamento, que preserva o feitio colonial, não resistiria. Quem abdicaria de carreira promissora para prestar o serviço militar? Que empresário, médico ou juiz gostaria de ver seu filho ouvindo gritos de sargentos e oficiais, faxinando quartéis, atrasando sua vida acadêmica?

A liberdade e a dignidade da mulher são incompatíveis com as corporações armadas que cultuam o legado colonial. Tal como a carreira militar está estruturada, nenhum oficial se casaria com mulher que rejeite viver na dependência do marido, um funcionário obrigado a uma vida itinerante, sem chance de criar vínculos com a sociedade. Quando os militares dizem que a esquerda quer destruir a família, exaltam a índole patriarcal e criminalizam os modelos familiares que as mudanças sociais vão impondo.

A defesa da condição LGBTQIA+ é incompatível com o castro mantido pelo Estado brasileiro: tumultuaria as regras de promoção hierárquica. Gay assumido não tem vaga na carreira.

A política externa “ativa e altiva” também é incompatível com os instrumentos de força do Estado brasileiro, sobretudo desde que foram modernizadas, entre as duas guerras mundiais, pela França. Por que uma potência imperialista modernizaria um aparato militar capaz de contrapor seus desígnios? O modernidade então alcançada apenas serviu para o monopólio interno da força, revelado inequivocamente em 1932, com a submissão dos paulistas.

A modernização não serviu à Defesa Nacional. Por maior e mais desenvolvido que seja, o Estado que depende de armas alheias não passa de um protetorado. Essa é hoje a condição Alemanha, do Japão, do Reino Unido…

Em termos de capacidade dissuasória, há dois tipos de Estado: os que fabricam e vendem armas e os que não fabricam e compram armas. Os primeiros, mandam, os demais fortalecem o mando dos primeiros. Ce n´est pas, monsieur Macron?

Ocioso lembrar, um governo que decida comprar aviões e barcos dos que desafiam Washington sentirá a mão pesada do Pentágono. O mesmo quanto a qualquer parceria estratégica que amplie a capacidade de dissuasão. Não há habilidade diplomática que drible esta contingência. Certo, Celso Amorim?

O maior desafio de Lula é o exercício do Comando Supremo de corporações armadas estruturalmente hostis à mudança social. É compreensível, mas não é aceitável seu esforço de contemporização. Os comandos militares, ficando por conta própria, as promessas explicitadas na subida da rampa serão fátuas. A negra catadora Aline Sousa será ludibriada. Os lanceiros coloniais vestidos pelo integralista Gustavo Barroso prevalecerão.

A expressão “tutela militar” precisa ser compreendida em seu sentido mais profundo: trata-se, sobretudo, de impor padrões sociais ao gosto do Estado que concebeu as fileiras para submeter o povo.

Disso resulta que, ou o poder político molda os instrumentos de força do Estado ou os quartéis, outorgando-se a condição de pais da pátria, persistirão empenhados em moldar a sociedade.

Lula é de uma inteligência rara e de uma sensibilidade política legendária. É líder inconteste dos brasileiros. Que compreenda rapidamente ser impossível declinar da atribuição de comandante dos generais.

Manuel Domingos Neto

Manuel Domingos Neto (Fortaleza, 5 de dezembro de 1949) é um historiador, professor, pesquisador, escritor e político brasileiro que foi deputado federal pelo Piauí. Em 30 de abril de 2010 lançou o livro O que os Netos dos Vaqueiros me Contaram, que destaca a criação extensiva de gado bovino na construção do Brasil, os problemas do desenvolvimento socioeconômico regional e a reprodução do poder político no meio rural nordestino.[5] Sobre seu livro Manuel Domingos relata: “ Eu busquei fazer uma reprodução do poder da época. Desde as figuras mais importantes da história do Piauí no século XX, até os seus grandes inimigos. Isso tudo partindo dos depoimentos colhidos em 1984, quando eu tinha aberto um laboratório oral em Teresina.