Diário de um escritor de província. Segundos aforismos

VI

Wittgenstein insinua a pergunta: por que gostamos de ouvir contar histórias. O mesmo Wittgenstein confessara sua admiração profunda e sincera pela poesia de Georg Trakl, embora não alcançasse a sua compreensão. Não há, em Fortaleza, placas de rua que celebrem e comemorem filósofos austríacos da linguagem nem poetas da Floresta Negra. Mas há um bairro com o nome de um presidente americano assassinado.

VII.

Ruas com bucólicos nomes de sentimentos, uma rua Saudade, por exemplo. Ruas absurdas até a maravilha, que enumeram os planetas do sistema solar. Uma rua misteriosa chamada Apocalipse, se não me engano uma pequena rua, e é mesmo numa ruela que eu espero que ocorram as revelações. Ruas com datas, nem sempre sabemos o que marcam. O que terá mesmo acontecido no 8 de Setembro? Os que souberem vão rir da minha ignorância; os que não souberem vão entender o meu espanto. Ruas que celebram os heróis da Confederação do Equador, que não temiam a morte, ruas que celebram os desenhistas geométricos das próprias ruas, e os inventores de palavras e de notas musicais. Ruas com o nome dos simples populares que fizeram a guerra no Paraguai, Jovita Feitosa, mitológica, João Sorongo, um dia boêmio e inofensivo, teria morrido com fiapos da bandeira imperial entre os dentes, pois lhe teriam cortado as mãos e só entre as presas podia segurar o pátrio velocino. (O mérito da guerra é bem confuso, mas confio na boa intenção dos populares.) Uma rua com o nome de Nogueira Acyoli. Fizeram contra ele uma marcha de crianças; era o presidente do estado do Ceará e levara as finanças ao colapso; o povo protestava e o presidente do estado do Ceará mandava que as tropas avançassem sobre os revoltosos. Pensaram, pacíficos: se levamos nosso filhos percebem que não queremos a violência, e não é possível que joguem contra nós sua força bélica estando nós, entre crianças, inocentes. O presidente do estado do Ceará ordenou que avançasse sobre a marcha das crianças a sua tropa, homens montados em cavalos. O nome de Nogueira Acyoli numa placa. Uma rua da cidade de Fortaleza.

VIII.

Que o passeio sentimental pela cidade leve a deparar com o nulo e o iníquo em nome da educação dos jovens. Desde que se confesse a iniquidade e a nulidade. Que os infames mais declarados, não necessariamente poderosos nem ricos, não apenas os ilustres, ganhassem também o nome das ruas, e que em pontos estratégicos placas um pouco maiores contassem sua breve biografia infame. É certo que poucos leem as placas que a ferrugem logo toma conta, o que seria também uma modalidade do perdão. Talvez apenas desse modo os logradouros enfim nos moralizassem. Os pais diriam aos filhos que o melhor era o bom agir: caso contrário seus nomes podiam nominar alguma rua pequena e mal iluminada, o esquecimento sobre a sua vida da forma mais irônica.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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