Por que abandonamos os críticos do passado. A sombra de Sérgio Milliet: parte três.
Não existe país em que todas as cidades sejam iguais; alguma delas vai ser coroada com o privilégio da primazia econômica ou cultural ou política. Há cidades que reúnem durante toda ou quase toda a vida de uma nação todos esses atributos juntos; há cidades que não imaginamos como já foram importantes na geografia do mundo. Assim, o esplendor histórico de Salvador e suas muitas camadas de passado é substituído pelo brilho cortesão do Rio de Janeiro; a capital da colônia se transfere e em pouco a colônia se torna um império independente (o único em todo o continente). Uma disputa folclórica se estabelece entre Salvador e o Rio de Janeiro, e simbolicamente entre o Nordeste e o Sudeste do Brasil: o saudosismo do lugar que já teve os principais privilégios diante de um concorrente que, à força exuberante de sua juventude, não pode ser derrotado. No caso, o Nordeste açucareiro e agrário é derrotado pelo urbanismo de um Sudeste de extrativismo mineral intenso e suicida. O esplendor carioca duraria até que brotasse como se da terra nascesse o poder econômico do café na forma de uma cidade grande e sisuda, que parecia saber como se ganha dinheiro, mas meio desajeitada na hora de se divertir. Surge São Paulo, um entreposto de tropeiros que de repente adquiria uma dimensão imensa e era agora mais que o recanto de uma faculdade célebre. Está estabelecida a rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo. O Rio de Janeiro permanece a capital federal durante ainda mais da metade do século XX e abriga o berço da música que seria conhecida internacionalmente como símbolo nacional e produto de exportação. Mas o poderio econômico está em São Paulo e São Paulo passa a reivindicar sua importância cultural diante do cenário nacional. Surge aquele que talvez seja um dos maiores movimentos coletivos e conscientes de interpretação e reinterpretação da cultura nacional, os responsáveis pela Semana de Arte Moderna de 22, que coroa o centenário da independência. É certo que o surgimento do Arcadismo consolida oficialmente nossa reivindicação política e que o Romantismo vai buscar nele os primeiros indícios de uma arte nacional autóctone e seus ideais, como defende Antonio Candido, em Formação da literatura no Brasil. Ocorre, porém, com o modernismo algo curioso: não se trata de um movimento cuja coerência se concentrasse somente nas ideias e que pudesse inspirar a qualquer um em qualquer lugar. Mário de Andrade pretende que apenas São Paulo poderia mesmo ter abrigado o movimento: a Cidade reunia a exuberância e pujança econômica a certo caiporismo dos costumes que a tornam suscetível ao espanto e ao escândalo, e o escândalo é a mola promocional das vanguardas históricas. No Rio de Janeiro, malandro, o espanto se diluída em pouco tempo e com pouco esforço. Era São Paulo que precisava tomar a frente do movimento, e de um modo tão deliberado que nunca tinha ocorrido com nenhum movimento cultural brasileiro.
Passadas algumas décadas e o antigo plano de transferir a capital do Brasil para o interior é tornado realidade; uma cidade-máquina é projetada e construída no meio do serrado. As antigas disputas folclóricas entre as grandes cidades brasileiras parece encontrar um ponto final, ainda que seja certo que Brasília não ocupa uma posição necessariamente invejável: é o centro burocrático e político da nação, uma cidade distante e isolada que mal consegue abrigar dentro de si trocas e convívios sociais. A fortaleza mais perfeita para uma ditadura tecnocrática que eventualmente pudesse surgir.
O Rio de Janeiro é oficialmente destronado. São Paulo não ocupa no seu lugar o posto que disputava e que lhe seria de direito. Brasília é coroada porque nasceu para isso, mas o certo é que perdeu-se todo o brilho da coroa.
Os destronados, por sua vez, tendem a mastigar o saudosismo e o ressentimento. Onde não se pode mais esbanjar tanto poder econômico ou mando político pode brilhar o fausto da produção cultural intelectual. (É um ponto polêmico e nem um pouco pacífico: o desenvolvimento cultural, embora precise de certo apoio material para que se garanta sua circulação, dependeria de certos períodos de declínio. Daí a reivindicação de primazia intelectual da Escola de Recife, do Naturalismo cearense e da Padaria Espiritual, e de vários movimentos isolados Nordeste afora, consequência mais ou menos direta da decadência do ciclo da cana-de-açúcar e da cultura patriarcal dos engenhos.)
São Paulo já se insurgira culturalmente com a Semana. E produzira algumas polêmicas importantes. O povo era posto como centro e fonte e base da cultural: o interesse sociológico dos realistas e naturalistas é substituído pela interesse antropológico e pela tentativa de construir uma psicologia e quiçá uma filosofia do Brasileiro, que, aliás, precisa constantemente ser descoberto, como se precisasse reviver constantemente ou fazer o psicodrama do ato fundador de sua colonização. Surge o Macunaíma e uma alegoria furiosa, em que subjaz uma espécie de pessimismo, ou fatalismo, estranhamente festivo, e o conceito de antropofagia, com Oswald, um desrecalque abusado que não só explica a construção da cultura brasileira como cria uma ferramenta, um instrumental bastante prático e bem à mão. O aspecto cultural mais terrível e chocante de parte das tribos indígenas era elevado à categoria de forma e de símbolo. O Brasil restava, enfim, descoberto.
Paulo Prado, que não é um opositor da Semana, pelo contrário, foi um dos seus incentivadores, sem querer, de forma mais ou menos indireta, acabou explicando certo incômodo que o modernismo paulistano causou na intelectualidade local. Sua obra principal – Retrato do Brasil – é um ensaio breve, profundamente erudito e elegante que sustenta e defende que o brasileiro, por formação, é essencial e inescapavelmente um triste. E essa tristeza só tende a se aprofundar quanto mais o brasileiro passa a refletir sobre si mesmo, e descobre seu misto de ganância, sensualidade desregrada e degredo. Essa concepção na superfície entraria em choque e contraste com a visão carnavalesca de Mário e Oswald da cultura e formação do brasileiro. Não seria impossível mesmo operar uma espécie de conciliação entre as duas forças, mas isso não pareceu necessário. Em compensação, a visão do brasileiro como um ser humano triste satisfazia a certos modernistas que não se identificavam com os ideais da Semana de 22 justamente porque não aceitavam a redução do Brasil a Carnaval e do brasileiro a folião. O que ganha expressão na admiração de Menocchi del Pichia por estados militarizados, nas tentativas de um outro modernismo por parte dos integralistas, pelos movimentos retrógrados e conservadores que tentaram . vão negar a herança da Semana.
É claro que se pode questionar tanto o carnaval quanto a depressão como um destino inescapável do brasileiro, mas a expressão mais descontraída da fala popular na poética era um fator decisivo e importante. A cultura popular ganhava um tratamento que nos parecia inédito. Oswald parecia tentar trabalhar com aquilo que ouvia nas ruas. Mário faz levantamentos etnográficos que buscam resgatar a música tradicional sertaneja e suas raízes mais remotas.
O povo brasileiro era mais uma vez descoberto como temática, mais do que isso, como temática e alegoria.
Faltava ser descoberto como realidade em carne e osso.
E faltava, sobretudo, que o vissem como leitor em potencial.