DIÁRIO DE UM ESCRITOR DE PROVÍNCIA. PRÓLOGO (VI)

A sedução e o limite. A primeira reflexão sobre a porta.

Cristo foi tentado pelo diabo enquanto se exilava no deserto. Para o cristianismo esse é provavelmente o momento mais importante da história, o que chamamos de decisivo, na vida de uma pessoa comum quando ela se torna o que ela é, o momento, aliás, em que começam os seus maiores problemas. Jesus Cristo, como sábios mais altos, um Buda ou um Confúcio, um Sócrates ou um Saussure, não precisou escrever os próprios ensinamentos e a crônica da sua vida. A passagem, inclusive, deve ser um pouco lacunar por causa disso; não havia mais ninguém no deserto com os dois. Cristo, o filho de Deus segundo o Novo Testamento, vence as tentações e descarta o diabo de modo bem ríspido e decidido, confirmando quem é com tanta segurança que mal sobra espaço para a mínima tensão dramática.

O que faria a maioria dos seres humanos comuns diante da tentação de tudo governar ofertada pelo diabo? A tentação se faria sentir nas veias de quase todos, por uma fração de segundos seriam mesmo capazes de dizer sim, mas acabariam voltando atrás. Apenas uma minoria, talvez ainda menor do que imagino ou não tão pequena quanto penso, diria sim. Os que nevasse de vez em quando pensariam no que perderam e pode ser que isso já perdesse suas almas: a razão de sua negativa não seria, em geral, a fibra moral e o desprendimento de um filho de Deus, ainda que também isso pudesse ocorrer: quase sempre a negativa ia nascer da vertigem, e de uma estranha mistura de covardia e prudência.

A maioria de nós está condenada a cair apenas em pequenas tentações.

O escritor charlatão (em menor medida, talvez ainda no nível medíocre dessas tentações mesquinhas), como seus pares mais ousados, que conduzem multidões indiferentes ao abismo, os famintos de carne e sangue, até que ponto seria capaz de dizer sim? 

Ao escritor que nem ocupa o outro lado da mesa porque nem mesmo na mesma sala se encontra jamais se irá fazer esse tipo de pergunta. Seria o mesmo que lhe perguntar se largaria seu ofício ou se o trairia. Traí-lo ou largá-lo são coisas que pode fazer e eventualmente fará, mas em troca de outras moedas, ou já numa negação total de todos os comércios.

É uma desonra que alguém se venda, dizem. Desonra e humilhação que alguém se venda barato. Cômico e trágico quando o comprador não se interessa.

Onde está Cristo nesse momento exato? A História irônica do seu retorno já foi contada até em canções de jovens adultos. Tudo poderia acabar num mãe mar de certezas que tornaria mesmo desnecessária toda a literatura, a não ser que ela construísse desde aí um jogo de contrários que deixariam para as crianças, se as crianças mesmas não restarem embriagadas de verdade. Tudo resolvido. O valor de todas as coisas mais claro do que etiquetas de preço: nenhum comércio poderia sobreviver a isso. A impaciência de João resolvida numa palavra: estou aqui, e sou, toda poesia e filosofia reduzida a papel sujo, todo o conhecimento sobre o ser humano reduzido à caricatura que um macaco fizesse de um macaco, toda matemática e física reduzida a rabiscos. E os autores disso tudo aliviados diante da verdade.

É uma ilusão na qual se distraem alguns impulsos e instintos raivosos e vingativos. O que sentimos quando assistimos aos filmes em que a justiça é feita pelas próprias mãos do injustiçado: esperamos, inverossímeis, que a Paixão tenha a evolução e o desfecho do Conde de Monte Cristo. Esse sentimento meio democrata e meio vulgar redime um pouco a tentação do poder. “O senhor não vai agir por si mesmo. É em nome da verdade e da justiça.” Será mesmo que no ponto da Paixão em que Cristo pede que se lhe afaste o Cálix é mesmo de simples sofrimento que ele fala? Será preciso um poder que proteja o indivíduo para que ele possa falar em nome de todos para que racionalmente se cumpram as profecias de verdade e de justiça? Já nem digo de felicidade, pois pode ser pedir de mais. Mas, enfim, será mesmo preciso que surjam escolhidos gloriosos que mereçam determinados cargos porque, como queria o filósofo, não o desejam?

Me lembra o Paulo Autran – talvez somente pela vontade de falar dessa imagem em algum momento, em Terra em transe, quando seu personagem aparece não propriamente dentro da trama, mas numa espécie de metanarrativa onírica: além de personagem específico ele é o destino poderoso do líder solitário, que nada vê diante de si, porque sua missão é conduzir seu povo-rebanho por caminhos jamais cruzados, mas ver ao próprio povo lhe é vedado porque, crucifixo numa mão e mastro da negra bandeira na outra, ele olha somente, homem leme, para frente. Ele não crê que mereça o poder quem não o deseje: absurdo e paradoxo, não faz sentido, ele pensa, como quem sabe de certeza, desejar o poder para que nada aconteça, como quem quisesse ser o deus do céu para que nunca mais houvesse tempestades ou o deus da terra para que nunca mais houvesse terremotos ou o deus do mar apenas para que voltassem em paz os pescadores. 

O que nos tolhe e controla é que sabemos (os de nós que um pouquinho souberem disso) mais ou menos o que vem depois. Nem sonhamos os poderes do mundo: foi só uma metáfora que saiu do controle. Somos apenas homens e mulheres que lidam com palavras, e tudo pode ter começado porque quisemos muito pouco, algo como um beijo que a boca jamais alcançou, e no seu lugar elaboramos as primeiras cinquenta páginas que na vida rescrevemos ou descartamos, insatisfeitos (o surgimento do escritor se dá com o primeiro ato de rescrita). 

Haverá um ridículo, porque o ridículo é inevitável, dos desejosos do poder do mundo: quando quiserem que todos o aceitem, absolutamente todos, sem a exceção de nem um: o momento em que os mais ricos pagam fortunas pelo direito de miserar, esmolar pelo mísero carinho. As primeiras cinquenta páginas que o orgulho esqueceu de rescrever ou deitar fora. 

 

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