Os amores mais convenientes.
Memento mori. Lembre-se da morte. Lembra-te: morres. Não há uma tradução perfeita; era o dito de antigos eremitas paulinos conhecidos como irmãos da morte; pelo cumprimento deviam se reconhecer e perceber que até lá não estavam sozinhos: por mais eremitas que fossem e cada vez mais se tornassem eremitas, quanto menos temor inspirasse a morte, o que devia despertar o respeito, a distância e a cautela dos cidadãos comuns que se limitavam a viver dias como se eles se somassem, e não se subtraíssem, ainda assim precisavam do consolo de saber que eram compreendidos por outros radicais que viviam a mesma experiência: respeitavam a amizade como os seguidores de Epicuro. Nossa época, pornográfica, redundante e mimada, sobretudo, só deseja o esquecimento disso. Memento mori, para nós, semelha a uma ameaça num filme de terror ou ao grito de guerra de um extremista suicida, ou qualquer soldado do crime que tenha se acostumado a não ter outras esperanças. Sócrates – creio que já disse isso antes, e que ainda vou repetir uma e outra vez – dizia que aprender a morrer era a missão do filósofo. Revoltado com essa reivindicação de superioridade, pensei por que não podia ser essa a missão do escritor? Em seguida, fraternal, percebi que os leitores, e eventualmente mais do que os próprios escritores, podiam participar desse conhecimento. Por fim, derrotado e humilde, percebi que essa era uma porta aberta à toda humanidade, que não se achegava, pelo contrário, arrepiava caminho, e não porque fosse uma porta estreita através da qual só os mais insistentes pudessem passar: são portões escancarados e bastante chamativos.
Mas de qualquer forma não é revoltante a morte, sobretudo as evitáveis, e humilhante a redução que ela opera? Sim: uma atitude francamente suicida não seria a resposta, assim como não o abandono do outro. Ainda assim, para isso, a chocante sabedoria dos funerais tibetanos: o corpo morto é levado aos topos mais altos, o monge que carregou o corpo como um fardo se encarrega de quebrar os seus ossos para que o processo se acelere um pouco, e o resto fica a cargo dos abutres. O funeral tibetano não é impiedoso: apenas despe uma hipocrisia que se veste de pudores.
A morte do outro era o inconveniente que impedia o esquecimento; há as mortes estatísticas dos dias comuns, que de algum modo esperamos que se equilibrem com a taxa diária dos nascimentos. Vêm as tragédias repentinas e a morte das celebridades; vem em algum momento a morte dos próximos, dos conhecidos, dos queridos. É quando se exercita a solidariedade e a piedade, é quando pensamos, se pensamos, que morremos. Uma epidemia generalizada começou a matar um número mais alto de vítimas por dia. E relativamente muitos de nós escolheram ou foram empurrados a preferir viver e esquecer o que não fosse vida e seus modos de sustento.
Escrever e pensar e até mesmo viver podem ser processos desse aprendizado. O poeta não pode perder de vista que sua obra pode ser interrompida porque não houve vida o bastante: não deve apressar o seu fracasso; os maravilhosos fracassos da arte e da literatura são abortados nos momentos mais exatos, ainda que sempre pudessem ser um pouco mais perfeitos. O trabalho deve ser mantido no seu ritmo de pesadelo e sonho.
Nesse sentido, Goethe e Proust: metade de uma vida dedicada a uma obra à sua construção. Não a veriam concretizada em publicação, mas não era isso que importava. Nesse sentido, Kafka: construiu sua obra, não acreditava em praticamente mais nada, e no final pediu que o amigo a destruísse; o amigo o traiu e ele nunca terá notícias disso.
O que sinto diante do tema? Ainda sou um aprendiz que lida com os próprios medos. Só acontece que nada me impede de admirar uma moral mais elevada que a minha.