DIÁRIO DE UM ESCRITOR DE PROVÍNCIA. PRÓLOGO (III)

 

A paixão imprudente do abismo. A única paixão.
É mentira – cuidado – que a confissão salve do pecado; quanta vez a
confissão não passa na verdade da forma mais despudorada de sua volúpia. A
confissão ainda dizem que perdoa e redime; tenho minhas dúvidas. Em
compensação, aquilo que se entrega num ato de volúpia precisa de salvação?
Impudente – o crime também pode ser um ato fundador – o leitor
empresta seus ouvidos surdamente a esse toque da palavra alheia; não parará
num único escritor nem num único escrito; para ele e para ela a multidão dos
livros e nem sempre será preciso pensar em quem os escreveu: livros como
amantes de ocasião de quem só se quisesse saber da exuberância do seu
corpo porque qualquer passo além estragaria tudo. Imprudente, criminoso e réu
já meio confesso, reincidente, em algum momento deseja escrever seus
próprios livros e os deseja nas vitrines de livraria. Quer se oferecer a múltiplos
desconhecidos que possam lhe dar um pouco do seu tempo e do seu dinheiro.
Ainda quando era leitor deve ter se perguntado quem estava do outro
lado das palavras. Quem estava do outro lado das palavras – quem as
escreveu – também pode ter se feito a mesma pergunta. Podem ter se
encontrado pessoalmente e falado sobre o assunto (essa possibilidade é o erro
fatal de uma era furiosamente pornográfica), mas é um engano e
eventualmente um engodo. Não é condenável, embora seja inútil, que se faça a
pergunta de uma ponta ou de outra, mas é tolice achar que esse encontro seja
possível e que seja real. Essa é uma das promessas do charlatão.
É curioso que tanta vez o charlatão se aproveite justamente da fé, ele
que é capaz de passar sem pudor sobre todo ritual e toda coisa sagrada.
O que ocorreria se fosse possível além do livro um encontro verdadeiro
de quem escreve com quem lê? Ou se mostraria inútil o livro ou se mostraria
inútil o encontro, mas o mercado exige repetições e continuações constantes.
Além de pornográfica, e de má pornografia, obesa época, dada a redundância.
Ainda assim quero crer que a redundância, nesse caso, ainda encobre que
estamos protegidos de um encontro impossível que só poderia destruir tudo ou
mostrar à criança curiosa que o mecanismo do brinquedo era tão simples que
quebrar o brinquedo não passou de desperdício: o brinquedo se perdeu de

uma forma tal que não pode ser substituído, o que se quebrou foi sua própria
ilusão.
O charlatão, o estelionatário, o contraventor dos truques simples acaba
querido porque sempre promete truques novos e, por baixo dos panos, a
revelação do seu segredo. Tudo se repete num círculo vicioso, e é comum que
as vítimas de hoje sejam os clientes de amanhã (querem a desforra do que
chamam de azar mesmo que já saibam que era tudo trapaça).
A salvaguarda do escritor encontrado (o leitor sem perceber interpreta
também essa comédia quando o encontrado é ele) é justamente algum tipo de
charlatanismo: terá que ser escritor em praça pública, o que rigorosamente não
é possível, mas terá então que improvisar seu melhor disfarce: o escritor se
disfarça de escritor e disfarça de leitor o leitor, sem que o leitor perceba.
Mas o maior lapso jamais poderá ser corrigido: o potencial de vida que o
leitor empresta ao livro e jamais ao escritor enquanto ele for mais que um
nome, enquanto durar o inconveniente da carne. É possível ler escritores que
já morreram como é possível escrever para leitores que ainda não nasceram. É
sempre no leitor que se encontra um devir de vida, por mais que também seja
possível escrever para leitores que já estão mortos. A explicação de por que
não é possível o encontro é que o encontro real anula todos os potenciais. Mas
a época além de pornográfica e obesa de tão redundante é também
precipitada.
E O mágico de Oz segue sendo um dos livros mais tristes de todos os
tempos.
Você pode escrever cartas pensando em pessoas específicas ou
direcionar o remetente de uma obra através de uma dedicatória. A situação
permanece a mesma.
O poema de amor é a celebração dos encontros que jamais realizam.
Jamais se realizaram.
Jamais se realizarão.

Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.

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Airton Uchoa

Escritor, leitor e sobrevivente.