Diário de um escritor de província. Nonos aforismos

XLIX
É preciso esquecer do que as palavras são feitas e acreditar nelas. A partir desse ponto as palavras são feitas do que elas dizem, e dizem o que acreditamos ouvir delas. É aqui que começam as grandes guerras silenciosas, ou nem tão silenciosas assim. Mas as palavras, se tivessem um conteúdo, se tivessem em si mesmas um poder evocativo meramente sonoro ou gráfico, que se desse à pronúncia ou ao rabisco da mínima palavra inteira, como se acreditava que ocorria nos rituais de magia, a mentira estava interditada, era uma impossibilidade, ou teria um preço a pagar tão alto que poucos arriscariam, nem haveria muito o que ganhar em troca, porque não haveria mentira que não fosse de pronto desmentida. Mas mesmo aqueles que, honestamente, quisessem apenas comunicar o pouco importante ou o pouco preciso iam ter que buscar outra forma de comunicação que não fizesse a terra tremer nem as nuvens soltarem raios. Tudo que não fosse sério teria que se expressar através de inúmeras modalidades de mímica. E quando tivessem que falar as grandes verdades para as quais existiam as linguagens articuladas, pela falta de experiência os oradores, sempre sacerdotes, não saberiam que palavras escolher, e o seu público de fiéis, o seu rebanho, não saberia o que ouvia, desacostumado que estava com a fala e a escrita. Então, na verdade, é preciso, antes, lembrar do que é feita a linguagem: descontados os mecanismos do aparelho fonador e dos fenômenos mentais da associação das ideias e das estruturas de todas as gramáticas por imaginar, pode ser que não sobre muita coisa, ou pode ser que não sobre mesmo nada. É preciso saber disso, é preciso lembrar disso, é preciso esquecer disso.

L
O que um escritor precisa saber? Do que é feita a linguagem eu não sei se é uma coisa que todos saibam de um modo tal que consigam dizer (pois é possível que os escritores não saibam dizer tudo). Do que é feita a vida e quanto ela custa e se ela vale a pena. Parece uma questão tão boa que não se deveria desperdiçar no exercício de gerar mais palavras ao redor do tema, nenhuma palavra além do que seja necessário, e nem me parece que seja algo de que só o escritor careça. O reino das palavras, perfumado de ausência, pode ser que tenha mais interditado que revelado esse caminho. Mas um escritor precisa saber lembrar ou saber esquecer?

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