DIALÉTICA DAS TRAÇAS

A primeira se aproximou da lombada em couro da Odisseia, de Homero, e resolveu argumentar:

Se eu der fim a esta Odisseia, traça irmã, daremos cabo do sofrimento de Penélope?

A outra, mais experiente devido ao comer dos tomos, tirou a vista do exemplar de Eneida, de Virgílio, devolvendo:

Se assim fosse, jovem traça, quando devorei no ano passado A divina comédia, de Dante, eu decretara o fim do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Mas, pelas orações que se pode ouvir das almas aflitas no salão vizinho, grande parte da angústia dos seres humanos ainda se resume a para onde serão destinados após a última viagem.

Houve um silêncio de insetos naquele ambiente repleto de livros.

Pouco depois outra traça, orgulhando-se de ter avançado rapidamente pelo miolo de um raro exemplar de A república, de Platão, leu uma passagem que caminhava vorazmente para digeri-la:

— “Hás de saber, com efeito, que quanto mais amortecidos ficam os prazeres do corpo mais crescem o deleite e o encanto da conversação. Não negues, pois, o que te peço, mas visita-nos mais amiúde e faze companhia a estes moços; somos velhos amigos e esta é como se fosse tua casa.”

Na prateleira superior, um cupim, em êxtase com o lauto jantar de que se servia, resolveu dividir com a assembleia um trecho de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Trecho este que reservara para saboreá-lo como sobremesa:

Não há livro, por mau que seja observou o bacharel , que não tenha alguma coisa boa.

Numa gaveta mais ao canto, entre uma espécie de bafejo marinho, uns versos ecoaram:

— “As armas e os barões assinalados,/ Que da Ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados,/ Passaram além da Taprobana…”

Enquanto Camões, em Os lusíadas, é apresentado àquela confraria traciana, surge um acento principesco em outra traça, a qual apresenta fumos elisabetanos:

“O que é um homem cujo principal uso e o melhor aproveitamento do seu tempo é comer e dormir? Apenas um animal.”

Eis que outra traça se manifesta:

— Quem come Shakespeare, tendo por isso sua principal função, deixaria de ser (ou não ser) um inseto?

A assembleia assume ares de aberta desordem, num tumulto de poeira e franca discórdia. Então uma voz advinda da escuridão, e com traços de recordação, mofa e zombaria, adverte os presentes:

“Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.”

Nos seus bigodes, a saliva das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Uma mais ao canto, entre um espelho e outro, a formar uma espécie de imagens em labirinto, alardeou, refestelada sobre as páginas de Ficções, de Jorge Luis Borges:

— “O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve se impor um futuro que seja irrevogável como o passado”.

A biblioteca foi tomada por histórias que se bifurcavam: ora extraídas e digeridas de alguns tomos clássicos, ora surgidas sob o signo da ousadia atroz de cópias de As mil e uma noites, e dos Ensaios, de Montaigne.

De repente uma traça declara em tom altaneiro e incisivo, como se investida dos poderes de narradora oficial:

— Atentem, caras devoradoras de livros, para esta passagem que gravei de As cidades invisíveis, de Italo Calvino, antes de guardá-la também no meu estômago: “… se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas.”.

A porta se abre, a luz entra, antes dos passos de um estranho. Reunidas diante de um tomo espesso, o exército de traças recua, enquanto o silêncio é quebrado pela voz daquele indivíduo:

Onde está a minha Bíblia?

Aquele livro nunca fora atacado, pois sempre fora visitado e lido.

(Pintura A biblioteca de Thorval Boeck Sun, de Harriet Backer)

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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