Desvendando a alma, por Álder Teixeira

Em 2018, Ingmar Bergman faria cem anos. Homem de teatro, romancista, roteirista e diretor de cinema de maior prestígio em todos os tempos, Bergman nasceu em 1918, na então pequena cidade de Uppsala, Suécia, país em que realizou quase tudo de uma obra absolutamente extraordinária.

Alguns de seus filmes, é certo, figuram entre o que houve de mais excepcional em termos cinematográficos, a exemplo de O Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), Gritos e Sussurros (1972) e Saraband (2003), para citar alguns títulos magistrais e mesmo indispensáveis em qualquer relação de “filmes para ver antes de morrer”.

Lembro de quando assisti pela primeira vez a um filme de sua autoria, Morangos Silvestres. Eu era quase adolescente, ainda, razão por que não encontro até hoje uma explicação objetiva para o impacto que a obra me causou, a ponto de querer, a partir dali, ver outros filmes, e ler obsessivamente tudo o que me chegasse às mãos sobre o cineasta sueco. Não foi, supostamente, a profundidade com que o filme examina a angústia do ser humano em meio aos mistérios da vida, a dor insuperável das perdas e nem os questionamentos acerca da velhice e da solidão, de resto temas recorrentes em sua vasta filmografia.

Havia ali, na forma como o diretor conduzia sua narrativa, embora fundamentada em procedimentos da cinematografia clássica, algo novo e original, um movimento de câmera, um enquadramento, uma luz, um ritmo narrativo, que me faziam ir para muito além do que é recorrente na experiência de uma simples recepção cinematográfica. Por inteiro, senti-me absorvido pela arte de Ingmar Bergman, hipnotizado pela força daquelas imagens a um só tempo tão simples e tão carregadas de poesia e de apuro estético.

Depois, assistiria a O Sétimo Selo, e aos filmes da primeira fase, Um Barco para a Índia (1947), fato incomum para um início de carreira, alvo de elogios efusivos de ninguém menos que André Bazin, o renomado crítico dos Cahiers du Cinéma; O Rosto (1959), com que Bergman abria uma pauta recorrente de sua filmografia: o papel do artista no mundo ocidental, a liberdade de criação, a função da arte e as razões por que fora sempre (e ainda é) objeto da censura dos poderosos de plantão; Mônika e o Desejo (1953), a poesia do amor juvenil, a tocante nudez de Harriet Anderson, a uma só vez terna e desconcertante, e, no final da película, aquele close do rosto fixado na câmera, como a denunciar a culpa de todos nós, num mundo cada vez mais irracional e estúpido  —  não à toa, considerado, por Jean-Luc Godard, “o plano mais triste de toda a história do cinema”.

Viriam, na sequência de uma admiração que só aumentava com o passar dos anos, até se converter num tipo de devoção estética, em ordem aleatória, Luiz de Inverno (1963), O Silêncio(1961), Através do Espelho (1961) e Persona (1966), esta verdadeira obra-prima com que Ingmar Bergman atingiria o que se pensava ser o ápice de uma trajetória quase irretocável em termos cinematográficos. Cinema de poesia, conforme examinaria eu anos depois em livro sobre o realizador sueco, sustentando-me na teoria de Pier Paolo Pasolini.

Sem esquecer, por óbvio, ainda, filmes sublimes, incomparáveis, enquanto cinema, no rigor e precisão conceitual de uma arte que extrapola os limites possíveis de uma definição: Fanny e Alexander (1982), máximo da expressão estética do artista, e o mais autobiográfico de seus filmes. Irreverente, dizia ele estar encerrando a carreira genial, mas seu canto de cisne viria somente em 2003, com Saraband, com que desnuda em definitivo a alma de seus personagens através da forma, da poesia, dos rostos inigualavelmente mostrados com seus planos filmados de perto.

Ver um filme de Bergman, para me valer das palavras felizes de um renomado crítico de cinema, “é meditar, é ir o mais fundo possível no âmago do ser humano, é viajar num planeta estranho à procura de uma chave que possa abrir nosso próprio cárcere para nos libertar de nós mesmos […]”

Nessa quinta-feira, numa iniciativa conjunta da Academia Cearense de Cinema, do Grupo de Estudos Só Freud e da Faculdade Ari de Sá, teremos a oportunidade de discutir sob diferentes perspectivas (estética, psicanalítica e historiográfica) a obra desse artista genial, que faria, em 2018, cem anos.

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica