Desemancipação e Dominação das Emoções

O filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, em seu livro Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal”, publicado pela UNESP em 2004, faz uma constatação de que, com a quarta revolução industrial, a classe capitalista alcançou um novo estágio da dominação cultural na disputa de hegemonia, além da difusão de ideias e manufaturação da subjetividade. Trata-se da dominação por meio da produção e controle das emoções, ou seja, do controle das nossas experiências emocionais: felicidade, ódio, ansiedade, indignação, amor, tristeza, raiva solidão e tantas outras.

As mídias, com seus dispositivos e aplicativos, e todo um sistema de algoritmos, são os meios usados para produção e manipulação da subjetividade e das emoções, procedimento que vem sendo largamente utilizado pelo capital para mobilizar pessoas com ódios contra alvos que elas elegem  como forças hostis dentro da chamada guerra não convencional, a qual parte do pressuposto de que a política é a continuidade da guerra por meios linguísticos, o que implica, dentre outras coisas, a disputa de narrativas e a ideia do pós-verdade. A manipulação das emoções é um instrumento muito poderoso para influenciar, inflamar e dirigir conflitos e disputas carregadas de afetos. É o triunfo do Bonapartismo Soft, que se caracteriza por constituir um regime político avesso à participação política das massas populares.

 

À dominação das emoções se soma o fato de que, a partir da década de 1970, vivenciamos uma conjuntura de crise estrutural do capitalismo, cuja resposta do capital foi a implantação de um processo de desemancipação patrocinada por meio de um conjunto sequencial e articulado de ações: desmantelamento do Estado de bem-estar social; instauração da plutocracia como forma de governo, ou seja, de governos emanados da riqueza e a serviço do mercado; capturação do Estado pelo mercado, fazendo com que os setores populares e médios da sociedade diminuam ou não tenham representação política no parlamento; exclusão da representação das organizações da sociedade de instâncias de consulta, deliberações e controle das instituições estatais; a ampliação de reformas neoliberais (trabalhista, previdenciária e administrativa) que desarticulam e enfraquecem o poder de mobilização, de pressão  e desestrutura as organizações  sindicais da classe trabalhadora; precarização, o precariado e a uberização da força de trabalho como principal acesso à renda do trabalho por meio da informalidade, sem garantias trabalhistas e previdenciárias, com o argumento falacioso de promover maior liberdade e autonomia ao trabalhador; a naturalização do abuso de concentração de renda em poucas corporações transacionais e personalidades e da violência, como se elas não fossem produzidos pela lógica de concentração de renda do capital.

 

Com o processo de dominação das emoções, parte da indignação social ou mobilização de vontades políticas é fruto de mobilizações manipuladas, como, por exemplo, o uso de fake news na formalização de opinião pública mobilizadora ou criadora de imaginários, principalmente nas redes sociais, fato que aponta para o abandono da democracia e para a instauração da tirania social como modo de sociabilidade entre as pessoas. Trata-se de um esvaziamento das normas morais e de convivência, o que pode nos levar a uma situação de anomia cuja consequência é a “guerra de todos contra todos”.

 

Esse fenômeno pode levar, se já não vem levando, ao esvaziamento do potencial transformador das mobilizações sociais antissistêmicas, que, manipuladas em suas emoções, podem realizar revoltas enraivecidas e destrutivas, mas que não modificam em nada as estruturas existentes, não abalam o sistema, ficam numa ação dentro da ordem, numa espécie de catarse emocional temporária que foge da memória em pouco tempo. Portanto, vivemos, na interpretação que faço da obra, um paradoxo, uma crise estrutural do capitalismo que, ao mesmo tempo, promove um processo de desemancipação.

 

Diante desse paradoxo, agora agravado com a pandemia do coronavírus, o enfrentamento ao capitalismo e a crise civilizatória da modernidade são os maiores desafios do século XXI para os que se colocam como horizonte a emancipação em suas várias possibilidades. Se o líder e intelectual indígena, Ailton Krenak, oferece-nos ideias para adiar o fim do mundo, podemos nos juntar a ele e ao seu povo para pensar um outro fim do mundo.

Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.

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Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.