Decisionismo político e brutalidade astuciosa: Joseph Fouché e Eduardo Cunha, por Filomeno Moraes

Uma das personagens mais formidáveis surgidas na esteira da Revolução Francesa foi decerto a de Joseph Fouché. Stefan Zweig, o judeu-austríaco que também escreveu “Brasil, um país do futuro”, dedicou-lhe a biografia intitulada “Joseph Fouché: retrato de um homem político”. E o considerou um político “puro”, isto é, alheio a qualquer limite moral ou jurídico, capaz de abraçar qualquer ideologia e aceitar qualquer cargo, traidor da Igreja e das nascentes instituições que vieram à luz com a Revolução Francesa, enfim, “o mais insólito de todos os homens políticos”.

Fouché foi o homem que derrubou Robespierre e Lafayette e contribuiu fortemente para a queda de Napoleão Bonaparte. Ao fim e ao cabo, abandonou e traiu os girondinos, os terroristas, Robespierre, os termidorianos, o seu salvador Barras, o Diretório, a República, o Consulado. “Fiel a si mesmo, só não traiu a viciosa e insaciável sede de poder que o colocou no papel do mais abjeto governante da era moderna”, salienta Zweig. E de obscuro membro da Convenção se transformou em figura importante no golpe de Estado do 18 Brumário. Professor eclesiástico em 1790, saqueador de igrejas em 1792, comunista em 1793, multimilionário cinco anos depois e, em mais dez, duque de Otranto, passou a vida política sobretudo na sombra e na clandestinidade, pois, acentua Zweig, “a noite é o seu elemento, a intriga a sua verdadeira esfera de ação”.

Respeitadas as coisas que mudam, não é despropositado atribuir alguma similitude entre a personalidade política do ministro da Polícia do Napoleão imperador, Luís XVIII e Napoleão dos Cem Dias e a do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil (1915-1916) Eduardo Cunha.

Para ficar só no período que começa com a ascensão à presidência da Câmara dos Deputados e termina com a perda do mandato de deputado por quebra do decoro parlamentar, Cunha exercitou um decisionismo pouco visto na política brasileira recente. Em contraposição à “astucia afortunada” que Maquiavel vislumbrava no governante republicano apoiado no favor do povo, Cunha desenvolveu uma verdadeira “brutalidade astuciosa”, no angariar e cooptar aliados e enfrentar e destruir adversários políticos. Assim, sob a sua presidência, apoiada no baixo clero partidário e parlamentar e calcada numa pauta marcadamente conservadora, a Câmara dos Deputados passou a funcionar com independência em relação ao Poder Executivo. Legislando autonomamente e bloqueando as iniciativas da presidência da República, além de dar a palavra final sobre a abertura do processo de “impeachment”, contribuiu decisivamente para a queda do atrapalhado segundo governo da despreparada presidente Dilma Rousseff e para o término de quase década e meia de domínio do Partido dos Trabalhadores.

Tal como o agir político de Fouché, o de Cunha também é o da noite e o da intriga, incompatível com o debate público e a visibilidade democrática. A sua defenestração era antecipável. No entanto, Cunha voltou à sombra, e o seu espectro ronda a vida política nacional. Do “de profundis” (tomo emprestado título da carta que Oscar Wilde escreveu da prisão) de Curitiba, assusta a República. Não à-toa, em tantos sentidos, a problemática conversa de amigos entre o presidente da República e um suposto delinquente de muitos delitos contra o tesouro e a administração públicos teve como fio condutor evitar o perigo que as revelações do “realpolitiker” encarcerado poderiam ocasionar.

Em entrevista à Folha de São Paulo (22/5/17, p. A6-A7), o presidente da República, apesar de tudo, agarra-se como tabua de salvação no argumento de que “ontem mesmo [21/5] o Eduardo Cunha lançou uma carta em que diz que jamais pediu [dinheiro] a ele [Joesley] e muito menos a mim”. Na mesma matéria, Michel Temer confessa o seu grande defeito político: a ingenuidade. Cunha, que definitivamente não é ingênuo, acreditará em tal ingenuidade?

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).