De volta ao pensamento único? Buscando o entendimento do nosso tempo, por Alexandre Aragão de Albuquerque

Por muitos séculos, a humanidade vivenciou uma hegemonia cultural ditada pela Igreja Católica em um tempo em que a religião era o vínculo fundamental das relações humanas do mundo ocidental. O axioma católico antigo expressava essa hegemonia: “extra Ecclesiam nulla salus”. Expressão máxima do dogma de que só havia uma única igreja, não havendo a liberdade religiosa, de culto, nem de crença: fora da Igreja não haveria salvação. O Concílio de Latrão (1215) regia: “Há apenas uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém é salvo”. Por sua vez o Concílio de Florença (1438-1445) professava que “ninguém que não esteja dentro da Igreja Católica poderá participar da vida eterna e irão para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos”. Muitos considerados hereges foram queimados nas intolerantes fogueiras da inquisição humana.

Acontece que os tempos mudaram, houve uma grande transformação, como bem atesta Karl Polanyi, com ela vieram a ruptura da unidade institucional entre Igreja e Estado, as reformas protestantes, as revoluções burguesas, os estados-nações. Uma quebra de paradigma no qual o pensamento único religioso católico cedeu sua hegemonia para o pensamento laico, de base materialista. Não mais o feudalismo com senhores feudais, seus vassalos e servos, mas o capitalismo mercantilista, industrial e financeiro com suas classes de patrões, donos dos meios de produção, e empregados, detentores da força-trabalho. Começava assim um mundo novo para o qual eram necessárias novas formulações filosóficas, econômicas e políticas.

Dois atores econômicos são determinantes na construção do capitalismo como fato histórico, possuidores de um poder político-econômico que somaram ao processo de técnica que vinha sendo desenvolvida no âmbito da produção de máquinas industriais. O primeiro personagem é o MERCADOR. Segundo Polanyi, o mercador monopolizava conhecimentos técnicos específicos: o conhecimento do mercado, do volume e da qualidade da demanda, além de encarregar-se também dos suprimentos relativos à fabricação como as tinturas, as molduras, os teares, para possibilitar ao aldeão a produção. Somente o LUCRO motivava-o, assim, seria preciso impor à sociedade um novo padrão de economia centrado no princípio do LUCRO.

O segundo ator econômico fundamental para a imposição à sociedade de um novo modelo econômico foi o CAPITALISTA FINANCEIRO INTERNACIONAL. Os banqueiros internacionais não se limitavam a financiar governos com suas aventuras de guerra e paz; faziam investimentos externos na indústria, nos serviços públicos e bancos, bem como empréstimos a longo prazo a corporações públicas e particulares fora do país. Os Rothschild não estavam submetidos a nenhum governo; eles incorporavam o princípio abstrato do internacionalismo; sua lealdade era para com uma empresa, cujo crédito se tornara o único elo supranacional entre governo político e o esforço industrial numa economia mundial em rápido crescimento. Em última instância, sua independência se originava das necessidades da época, que exigia um agente soberano, digno da confiança tanto dos estadistas nacionais como do investidor internacional. Da mesma forma, o objetivo da banca internacional era o LUCRO; para atingi-lo era necessário um bom relacionamento com os governos cujo objetivo era o poder e a conquista.

Conforme Polanyi atesta, foi preciso adotar medidas necessárias para que o novo sistema pudesse nascer. A mudança institucional começou a operar abruptamente. O estágio crítico fora atingido com o estabelecimento de um mercado de trabalho na Inglaterra, no qual os trabalhadores ficavam ameaçados pela fome se deixassem de cumprir os ditames do trabalho assalariado. Não importava o fato de que o trabalhador desempregado não fosse responsável pela sua própria sorte, ou seja, se ele podia ou não encontrar trabalho. Era preciso que o trabalhador se sentisse ameaçado pela fome para o sistema capitalista dar certo. E foi o que aconteceu.

Depois dessa breve viagem, chegamos ao Brasil do século XXI, no mundo globalizado. Para diversos autores a globalização é o ápice do processo de produção capitalista, com uma combinação de novos arranjos técnicos, implicando uma brusca mudança nos processos de produção econômica, com uma nova forma de perceber e pensar politicamente o tempo e o espaço mundial pela elite econômica. A globalização é a emergência de um mercado dito global responsável pelo essencial dos processos políticos. O imperativo econômico da globalização é estar presente no mercado mundial, custe o que custar, mesmo se para isso se deixe de lado as necessidades básicas das pessoas. Para o pensamento hegemônico, a economia é uma guerra em que somente valem as relações de poder. E fora dessa guerra, não há salvação. Esse é o axioma da cultura capitalista globalizada.

Para garantir essa hegemonia, valem-se dos meios de comunicação de massa pelos quais se busca iludir e convencer as pessoas. O que é transmitido é uma comunicação manipulada que em lugar de esclarecer, confunde. Portanto é uma informação que se apresenta como ideologia. Ela se insere nos objetos e apresenta-se como coisa. A ideologia se torna real e está presente como realidade, sobretudo por meio dos objetos: eles se apresentam diante de nós não apenas como um discurso, mas como um discurso ideológico que nos convoca a uma forma de comportamento. E esse império dos objetos tem um papel relevante na produção de “um ser humano apequenado” que estamos todos ameaçados de ser. As mídias nacionais se globalizam pela chatice e mesmice das fotografias e dos títulos, como pelos protagonistas mais presentes [todos os dias o presidente dos Estados Unidos está nos telejornais ditos nacionais]. Falsificam-se eventos, já que não é propriamente o fato o que a mídia nos dá, mas uma interpretação. O evento é entregue maquiado ao leitor-telespectador e assim produzem-se fábulas e mitos, intrigas e confusões.

A ideologia que dá sustentação a nova forma de produção econômica global é o neoliberalismo, uma teoria que pretende dar uma explicação total do ser humano e de sua história em torno da economia. Faz da economia o centro do ser humano a partir do qual todo o resto explica. Como lembra o professor Milton Santos, neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos constituem baluartes do presente estado de coisas. A competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo comanda nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede nosso entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos.

Nossa grande tarefa, hoje, é a elaboração de um novo discurso capaz de desmistificar a religião neoliberal globalizada. A questão capital é o entendimento do nosso tempo, sem o qual será impossível construir um discurso da emancipação humana. Este, desde que seja simples e verdadeiro, poderá ser a base intelectual da ação política contemporânea.

 

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .