Crise , poder e governo

Estamos vivendo no século XXI uma profunda crise de racionalidade, uma mudança de era, uma crise do padrão civilizatório da modernidade. Essa mudança marca nossa epocalidade com o ceticismo sobre o futuro e por  uma situação próxima da barbárie no presente. A esperança, no início da primeira década, veio da chegada dos governos chamados progressistas na América Latina. Já na segunda década, a esperança se amplia com a insurgência dos indignados e da irrupção do ‘podemos’ na cena política da Espanha. No século XX, o fracasso do socialismo e do Estado de bem-estar social deixou uma grande lacuna: a necessidade de um pensamento emancipatório capaz de oferecer novos horizontes para um processo de desenvolvimento compatível com a sustentabilidade de todas as formas de vida no planeta.

De todos os aspectos de nossas vidas, o poder continua sendo um dos menos compreendidos e um dos mais complexos a influir na normatização da vida e na dominação da natureza [vegetal, animal e mineral]. Segundo Toffler, o poder corresponde à violência, ao conhecimento, à riqueza e aos papéis que eles representam em nossas vidas. Embora se diga que os velhos padrões de poder estão rachados e se preparando para explodir em relação ao controle do aparelho estatal, ele continua sendo um mecanismo importante para garantia da organização social, econômica e política dos países. Constitui-se, portanto, um grande desafio à democratização do aparelho de estado, garantir a sua transparência e o seu pleno funcionamento como instrumento de redistribuição de renda.

No Brasil, pós-constituição cidadã de 1988, continuamos aprofundando as contradições de um país legal e um país real. No legal, todos são iguais, todos têm direito a, no mínimo, um salário mínimo, para que superem as carências de moradia, alimentação, vestuário, lazer, saúde e transporte. Já no real, depois de atingirmos o contingente de 32 milhões de pessoas passando fome, vivemos a crise de um modelo de inclusão baseado no estímulo ao consumo, por meio de políticas compensatórias e seletivas [bolsa família, minha casa minha vida, luz para todos etc.] e não por meio da garantia de direitos universais e políticas de redistribuição de renda. Vivemos um momento em que a política conduzida por um partido que se diz dos trabalhadores impõe um ajuste cuja conta quem paga são os pobres, os trabalhadores e a classe média.

Por que, agora, não fazer um ajuste onde quem sempre ganhou e acumulou riqueza, como os setores rentistas, o capital financeiro, o agronegócio, os extrativistas, pague a conta? Por que não regulamentar e efetivar na Constituição os aspectos que garantem direitos e poderes aos cidadãos? Ora, porque na sociedade brasileira vivemos um momento de refluxo onde, no confronto entre o Estado [gestor dos recursos públicos] e o mundo da produção e das finanças [interesses privados], a união dos interesses privados vem se impondo e fazendo valer, junto ao governo, uma agenda baseada em medidas ortodoxas que visam um novo processo de reconcentração de renda como promessa de saída para crise econômica. Portanto, vivemos numa conjuntura em que a disputa por uma nova direção política e moral na sociedade perdeu espaço e a oportunidade de se impor quando o PT, chegando ao poder, se omitiu em adotar políticas de ruptura com a cultura política vigente; em fazer reformas profundas; e em conduzir um processo de empoderamento da sociedade para se manter no poder por meio de uma aliança com setores conservadores que sempre dominaram e praticaram a velha política.

No Brasil governado pelo PT, continuamos com uma prática política que separa o ético do técnico. O poder e as ações do governo não são legitimados por obedecer a regras éticas e democráticas, mas por obedecer a regras técnicas, as quais não se exige que sejam justas, mas que sejam eficazes aos interesses privados. Os escândalos de corrupções envolvendo as maiores construtoras do país, a chamada Operação Lava Jato, e a forma como foram anunciadas e conduzidas as obras do PAC são exemplos. Que tipo de diálogo o governo teve com os povos indígenas ao serem estes afetados pelas obras da hidrelétrica de Belo Monte? Esse paradoxo encontra seu fundamento na racionalidade instrumental que orienta o governo e seu partido na sua estratégia de conquistar o poder e nele se manter e se perpetuar. E sem cidadania, sem garantia de direitos universais, será difícil falar em Estado de direito, em redistribuição de renda e de radicalização da democracia.

Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.

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Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.