CRISE COMO TRUNFO

Crise é impasse e oportunidade. Pode servir à conquista do poder, que está no âmago da política. A vontade de potência, aludida por Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), pode eclipsar os demais objetivos da política. O múnus público, consequentemente, perde legitimidade.

Tempo limitado de mandatos, divisão das esferas do Poder, permissão dos governados dada pelo voto universal, secreto e periódico, garantias individuais integram a soberania dos cidadãos, são requisitos da democracia. O Judiciário não tem autorização do eleitorado para tomar decisões políticas. Estas cabem ao Legislativo. O Executivo não tem legitimidade para legislar. Decretos devem apenas especificar o alcance e a aplicação da lei.

O Judiciário deve expedir decretos definindo o significado e o alcance da lei e a compatibilidade da legislação infraconstitucional com a CF. Não legisla positivamente. A atividade judicante deve dizer o direito entre partes específicas, dirimindo conflitos, restabelecendo a paz social. O STF pode, ainda, legislar negativamente, retirando do ordenamento jurídico ato normativo inconstitucional. Legislar positivamente extrapola a competência do Pretório Excelso, retalho da legitimidade do poder do Leviatã.

A competência dos entes federativos precisa ser definida. O STF, que tudo decide amparado numa constituição analítica, dirigente e total, ao declarar competência concorrente entre União, estados e municípios, dizendo que cabe às três esferas da Federação decidir sobre um mesmo objeto, precisa explicitar a competência de cada um.

A invasão de competências é semeadura de crise, é prática de pescadores de águas turvas. Um poder absoluto, sem um freio ou contrapeso, com a prerrogativa de errar por último no exercício de todas as funções do Estado, é absolutismo. O poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto (John Emerich Edward Dalberg-Acton, Barão Acton, 1832 – 1902).

Invasão de competência gera crise, impasse, ingovernabilidade ou vácuo de poder e insegurança jurídica. Historicamente leva aos governos de força. Roma republicana estabelecia um ditador pelo prazo de seis meses. Quando houver convulsão social ou agressão externa, temos previsão constitucional dos estados de emergência e de sítio, com regulamentação restritiva. Sem estas hipóteses não solução clara estabelecida para crise institucional. Diversamente do parlamentarismo, o Legislativo não pode ser dissolvido e convocadas eleições, nem temos o voto de desconfiança que destitui o chefe do Executivo. O impeachment tem base em crime de responsabilidade, tipo relativamente aberto; julgado pelo poder político, que emite juízo político e se arrasta por longo tempo. É crise. Câmbio, investimentos e governabilidade sofrem.

A insegurança jurídica afeta as garantias individuais: a reserva legal no sensível campo penal foi violada, com a criação de tipo penal pelo STF; uso de analogia in pejus, a instauração e o prosseguimento de inquérito penal contra parecer do Ministério Público; a fusão do papel de vítima, investigador, acusador e juiz, violou o processo acusatório; investigação de tipo penal inexistente, sob rótulo de fake news e delito de opinião; criação de flagrante por mandado judicial; e execução de mandado na calada noite. Acabou a segurança jurídica e não há remédio constitucional previsto. A unanimidade de algumas destas decisões e os processos sem fim contra senadores afastam qualquer limite do STF.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.