“Não amemos com palavras, nem da boca pra fora. Amemos com fatos e na verdade. Nisto é que conheceremos se somos da verdade”. Primeira Carta de João Apóstolo.
Ontem à noite recebi uma ligação telefônica de um grande amigo recifense, de longa data, o doutor em matemática Severino Barros (Gaud). Conheci Gaud em 1974, numa Mariápolis (congresso anual do Movimento dos Focolares) em Campina Grande (PB): eu no início de minha adolescência, ele preparando-se para prestar o Vestibular. Durante esses anos tivemos a oportunidade de estar juntos em algumas articulações concretas em nossa juventude, entre as quais, na produção de shows musicais (Comunhão – 1983; Alvorecer – 1984); na coordenação regional do Movimento Jovens por um Mundo Unido (1984-1989); na produção do Genfest do Nordeste do Brasil (1987), com a participação de 8.000 jovens; no trabalho social e político junto a comunidades, entre as quais a Ilha de Santa Teresinha (Recife). Em 1990 me transferi para Fortaleza (CE), mas nunca perdemos nosso contato.
Diante do quadro caótico da ameaça de avanço do bolsofascismo e do fundamentalismo religioso, que contaminam gravemente o tecido social com seu vírus da insanidade e da mentira, cujas consequências implicam a redução da linguagem e da afetividade para com o outro, promovendo o atrofiamento dos espíritos e da capacidade de diálogo entre os diversos segmentos sociais, nossa conversa girou em torno da nossa responsabilidade enquanto sociedade civil brasileira em revitalizar o cenário cultural com articulações produtoras do bem coletivo, por meio de ações concretas e criativas, compartilhadas e inclusivas, a partir dos nossos locais existenciais.
Como sinaliza profeticamente a canção de Gilberto Gil, é preciso ter a coragem de “subir aos céus sem cordas para segurar”. Ou seja, desapegar-nos da segurança de fórmulas passadas para construir um novo presente, atualizado, arriscando-nos em novas visões, ações e arranjos compartilhados, estabelecendo diálogos de base profundos, conduzidos sempre com maior compromisso de agregação de forças que, embora no meio de inevitáveis dificuldades, revelam-se como resposta possível às ameaças geradas pelo bolsofascismo e pelo fundamentalismo religioso, para avançarmos decididamente rumo a um horizonte mais vasto, no qual se descubram talentos e peculiaridades dos diversos participantes, num enriquecimento recíproco.
Diálogos capazes de gerar homens-e-mulheres-mundo, com abertura e olhares necessários para ultrapassar os limites extenuantes e ineficazes das ameaças da direita fascista em ação a nível internacional. Homens-e-Mulheres-Mundo que assumam a centralidade da existência no exercício constante da reciprocidade, húmus capaz de fazer germinar uma nova cultura solidária e inclusiva. Diálogos capazes de atualizar o princípio fraternidade, um dos componentes fundamentais do lema da democracia moderna. Os vocábulos “irmãos” e “hermanos” têm origem no latim “germanus” que significa aqueles que têm o mesmo gérmen, a mesma origem humana. A importância da fraternidade como categoria política se dá porque ela, diferentemente da liberdade e da igualdade, está mais sujeita aos movimentos que caracterizam as relações de base (ontológicas) entre os sujeitos. Entre outras razões, recolocar a fraternidade, a partir de uma nova perspectiva antropológica, no centro da razão política, significa uma forma eficaz de verificação da pretensão de qualquer projeto histórico em fomentar uma cultura que promova a vida em plenitude, e não a violência por meio da proliferação das armas.
A outra face da perversa moeda bolsofascismo-fundamentalismo é o neoliberalismo econômico que entronizou o consumismo como o soberano do tempo presente. Pela estrutura do capitalismo financeiro, a classe dominante obtém lucros desmedidos, promove a exacerbação do consumismo desenfreado em detrimento de uma profunda desigualdade social, condenando massas de populações inteiras à miséria e à fome, como se constata no Brasil pós-Golpe de 2016.
A crise mundial pode ser resumida na ditadura das finanças pondo a descoberto os seus próprios desequilíbrios, carente de visão antropológica ao reduzir as pessoas apenas a uma única dimensão de sua humanidade: o consumo. No tempo presente marginaliza-se a questão ética precisamente pela ausência da categoria do bem comum, relegada ao esquecimento e à marginalidade pela economia neoliberal, totalmente centrada no egoísmo e na privatização dos bens. Onde não há a dimensão do bem comum, por meio do qual a economia contempla a todos, protegendo os mais vulneráveis e os historicamente explorados pelos sistemas e estruturas econômicas do passado (por exemplo, o escravismo brasileiro), o fratricídio (como propõe o bolsofascismo) ocupa o lugar da fraternidade.
Como lembra Papa Francisco, “a economia só cresce e se torna humana quando as moedas do Samaritano se tornam mais numerosas e circulantes do aquelas de Judas”. Ou seja, há o dinheiro que é usado para trair, torturar e assassinar pessoas, como existe o dinheiro que é aplicado para salvar e garantir vidas. Depende da estrutura econômica que construímos: voltada para os ricos ou voltada para o bem comum. Depende do compromisso de cada um.