Confidências a Paul Celan

Todos os poetas são judeus.
(Marina Tsvetáieva)

ERA TERRA DENTRO DELES, e
cavavam.

Há mais do que terra dentro de nós, e cavamos cada vez mais. Em busca do centro de tudo. Dos dias, das noites e dos segredos não revelados, enterrados.

Cavavam e cavavam, assim se passavam
seus dias, suas noites. Não louvavam a Deus,
que, como ouviam, queria isso tudo,
que, como ouviam, sabia isso tudo.

Cavavam, incansavelmente num presente, o qual resvalava, fugia e nem se ouvia no instante que se ouvia, pois já sabiam tudo: o degredo, o segredo, o degelo da memória.

PALAVRA DE IR-AO-FUNDO,
a palavra que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Somos nós, ainda.

Muitas vezes a palavra que nos levava mais ao fundo de nós, tal uma joia incrustada no cerne da alma-rio, é a que se apresentava mais ao rés do chão. Desprezada quando passávamos, a repararmos, abobalhados, no céu, no cosmos, no infinito. A palavra, desde então, se fez companhia minha, e de tantos, “profunda-nos o fundo”.

Nós
não sabemos, sabe,
nós
não sabemos,
o que é
que conta.

Quem imagina que sabe, sabe que não sabe; mesmo assim, professa, sabido, aquilo que conta (para os outros), mas nada vale para ele, que sabe que não sabe. E com isso conta.

Quem
disse que tudo morria para nós,
assim que o olho falecia?
Tudo despertava, tudo principiava.

Os meus olhos desfalecem na cama nesta noite fria. Nesse instante de morte algo se prenuncia: o olho desperto, inverso, principia a pintar o sete nas reminiscências que me aviam, “algo assim como um nome?”.

***

Ninguém nos molda outra vez de terra e barro,
ninguém encanta nosso pó.
Ninguém.

Vê o barro na minha face, a moldar-me a forma, a garantir-me o jeito? Os fiéis na Matriz criam. Vê o pó a anunciar a vida, e ela, mais ninguém, me desabrindo?
Minha mãe, crédula, benzia-me. Terra e barro de Licânia, melhor lugar para nascer, outra vez, não havia.

Louvado seja você, Ninguém.
Por ti queremos
florescer.
De encontro
a ti.

Louva-me, quer tu, quer Ninguém, no silêncio na pia. Quando eu, banhado na graça, gritava e esperneava, na certa já ciente da dor do pecado, cometido antes da lida.

Um nada
éramos, somos, continuaremos
sendo, florescendo:
a rosa de nada, a
rosa de ninguém.

Que floresça a rosa do nada, pálida, trêmula, ao sabor do meu invento. No varal das horas, ela continuará a florescer, enquanto se dissipará, corola “sobre, ó por sobre/ o espinho.” Quem sabe, hoje, “é uma das corolas que en-/florescem selvagens.”

***

Algo que nasceu em ti
da mão e de suas
feridas fecha
teus cálices.

No desespero cabal deste instante, átimo de luz e sal, saro as feridas lendo os teus versos, Celan, e me regozijo com o espinho que sarja o tumor da memória, e descomprime a pressão do calvário cotidiano, sendas de um “homúnculo pipitante”.

***

Tudo,
até mesmo o mais pesado, estava
pronto para voar, nada
retinha.

A escrita, o silêncio, o inimaginado, “O meridiano”… Tudo, antes tão pesado, está pronto para se alçar no nada, refeitos da condenação ao desterro, ao sepulcro, ao fatal e silente abismo.

TUDO É DIFERENTE do que você imagina, do que eu
imagino,
a bandeira ainda paneja,

os pequenos segredos ainda persistem,
ainda projetam sua sombra, é disso que
você vive, eu vivo, vivemos.

Obs.: trechos em itálico, e entre aspas, extraídos da obra A rosa de ninguém, de Paul Celan (São Paulo: Editora 34, 2021).

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