Companheiro Acácio e o pardal

— Companheiro Acácio, que tristeza!
Acácio calado estava, sorumbático ainda mais ficou.

Bem sei que quando ele se encontrava naqueles dias, era prosa perdida se me arvorasse a seu confidente.

Aliás, Acácio detesta os enxeridos, os fuxiqueiros, ou os curiosos trajados de amigos confiáveis.

Fui à cozinha e, lá, preparei um café coado para nós dois.
— Não se esqueça de escaldar as xícaras! — alertou-me Companheiro.
Antes de mandá-lo para o reino da m…, engoli meu desabafo, dando um gole no café donzelo.
— E o meu? — protestou Acácio, vendo-me retornar à sala sem o seu café.
— Vá escaldar sua louça, safado! — desabafei, com cara amarrada.
Acácio saiu com aquele passo manso, voltou e sentou-se ao meu lado.
— Não foi minha intenção… — E, antes de prosseguir, vestiu sua face com a máscara da melancolia mais profunda.
— Não precisa chorar. Você sabe como eu sou frouxo quando vejo alguém em pranto — alertei-o.

Alguns segundos em silêncio, quebrado tão só pelo sorver mútuo da rubiácea.
— Que tristeza é essa, Companheiro?
Acácio cofiou o bigodinho, passou a mão na careca brilhante e me confidenciou:
— Hoje pela manhã, Clauder Arcanjo, pequei por omissão.
— Mas, somos todos pecadores. Você mais do que eu, claro! — disse-lhe.
Ele depôs a xícara no pires, que se encontrava na mesinha de centro, e continuou:
— Saí de casa logo cedo, rumo ao meu compromisso matinal. Eis que quando, ao dobrar a esquina a dois quarteirões daqui, deparo-me com um pequeno filhote ao chão. A piar, aflito.
— Um canarinho? — interroguei-o.
Ele ajustou os óculos, como a me sinalizar: “Aguarde, agoniado!”.
Calei-me, arregalando olhos e aguçando ouvidos.
Ele, então, continuou:
— Um pequeno pardal. Indefeso naquela calçada que, logo mais, estaria tomada por uma multidão apressada. Sem olhar para onde pisa, apenas com a cabeça perdida nos compromissos da vida.

Nesse instante Acácio era a própria tristeza. À minha frente, como se houvesse cometido um crime imperdoável. Na comissura dos lábios, retinha um tremor de náufrago.

Você, leitor, me indaga o que significa “tremor de náufrago”. E eu lá sei? Foi só o que me ocorreu ao tentar traduzir aquela cara de bezerro desmamado em que flagrei o Companheiro.
— Tão novinho… Piava, as asas ainda insuficientes para o voo inaugural… perdido naquele piso de cimento e pedra. Ah!, e eu fingi que não o vi e passei ao largo. Eu sou um bosta, Arcanjo! — E caiu num choro de arrependido.
— Companheiro, todos nós somos assim: um bosta na vida — consolei-o.
Acácio me olhou enraivecido; em seguida, distanciou-se de mim a afirmar:
— Você não serve sequer para confidente! Não passa de um…
Antes que ele despejasse seu arsenal de injúrias, alertei-o:
— Quem sabe se saíssemos agora não poderíamos salvar o seu pardal!
Ele esboçou um pequeno sorriso e certificou-se do meu projeto a me perguntar:
— Ir para a rua agora? E procurar por…
Não o deixei concluir:
— Claro! Ficar chorando o leite derramado, Acácio, não nos trará a coalhada de volta.
— A coalhada de volta?! Onde você colheu tão pobre expressão, seu anjo de uma figa? — aborreceu-se Companheiro.
Não havia tempo a perder (nem desaforo a colher), melhor seria passarmos do verbo para a ação.
— Se demorarmos mais, tudo será perdido. A morte do pardalzinho será feijão contado.
Saí para a rua e senti o rugir acaciano logo atrás de mim: “Feijão contado!? Tenha pena de mim, Senhor!”.

&&&

Corremos ruas, becos, esquinas… nenhum sinal do passarinho.
— Um pequeno pardal. Um pardalzinho, vocês viram?
Perguntávamos a todos, nenhum sinal.
— Vamos ficar aqui embaixo. Foi debaixo desta copa, no piso desta calçada que o pobrezinho se encontrava, Clauder, tenho certeza. Quem sabe ele não retorne — cogitou Acácio.
E lá ficamos. Horas e horas.
Final da tarde, caros amigos, voltamos para casa. Em estado de petição de miséria. Vários pássaros fizeram serviço sobre nós. Alguns cães urinaram nas nossas pernas, pois parecíamos duas estátuas. Sem falar que, na Hora do Ângelus, um pombo pousou no meu ombro direito, arrulhou, obrando uma defecação memorável.
— Companheiro Acácio, que tristeza!

* Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia de Letras do Brasil (ALB) e de outras entidades culturais.
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Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.

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Clauder Arcanjo

Clauder Arcanjo é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras.