Será possível ainda falar de nobreza da alma sem que isso pareça um conceito ultrapassado, pertencente ao mundo mágico dos heróis, ou o romance do século XIX? Antes era assim – uma característica dos heráldicos -, ou seja, o imaginário “sangue azul”: privilégios que se justificavam com atitudes particulares, fruto da herança e da educação. Uma grandeza da alma, sacrificar-se pelo rei ou pela fé, socorrer as viúvas e os órfãos, perdoar inimigos, triunfar sobre os adversários só se fosse através de luta honesta, ser generoso com os próprios bens, manter-se fiel à palavra dada… um conjunto de atitudes ainda hoje chamadas de “cavalheirismo”. É o homem forte quem renuncia usar a própria força. Uma ideologia bonita, no entanto, como bem podemos imaginar, quase nunca correspondia à realidade. Muitos cavalheiros e cavaleiros eram egoístas e ávidos, covardes e traidores. Mas determinaram um ideal de homem “importante” até os dias atuais. Para os cavalheiros e nobres do Antigo Regime, a nobreza da alma era incompatível com as atividades das classes baixas: camponeses, artesãos, comerciantes, feirantes, “o povo”, ou seja, “genti póbi”. E portanto, aos olhos da realeza, aquelas pessoas viviam em função de seus interesses, logo, não podiam ser “desinteressadas” e, ao mesmo tempo, fiéis aos ideais. Fazer coisas em troca de dinheiro era uma atitude ignóbil. Passados os tempos, o que acontece? As revoluções burguesas, iniciadas na França e estendidas, inclusive, na primeira metade do século XIX, quebram o domínio político dos nobres. Mas essas novas classes sociais herdaram os ideais da antiga nobreza. E o herói romântico quase sempre fracassa contra um mundo ordinário – um mundo frio, onde quem reina é apenas o vil metal. Alguns românticos até realizaram na “vida real”, as suas inspirações, o poeta inglês Lord Byron morreu em 1824 na Grécia, ajudando os gregos na guerra pela libertação contra os turcos. Fato semelhante ocorreu pouco mais de um século depois. Foi quando os fascistas do general Franco tentaram tomar o poder na Espanha, em 1936, e iniciaram uma guerra civil. Dezenas de milhares de estrangeiros do mundo inteiro chegaram à Espanha para defender a República. Nas Brigadas Internacionais e outros grupos, pessoas que poderiam ter vivido tranquilamente na Inglaterra, (como George Orwell), na França ou em outros países, arriscaram a própria vida. E muitos se foram! Em nome de uma causa que julgaram essencial para a liberdade humana. Uma linda página da história, apesar da derrota final. Na divisa de Ceará e Pernambuco, uma bisavó arriscava a vida: fazia pirão de vaca para alimentar Lampião e seu bando, protegidos e escondidos na casinha da cacimba de uma fazenda. Talvez, em agradecimento à senhora, Virgulino segurava sua filha de 10 meses e colocava, com os próprios dedos, o pirão na boquinha da infante. Milhares de pessoas esconderam judeus quando os ocupantes nazi os perseguiam. Quem os ajudou também arriscou a vida. O Memorial de Vad Yashem em Israel honra a memória de mais de 22 mil “Justos entre as nações” (prêmio instituído pelo Memorial do Holocausto como reconhecimento a todos os não-judeus que, durante a II Guerra Mundial, salvaram vidas dos perseguidos pelo regime nazista.). Dois nomes brasileiros estão na lista, um é Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, esposa de João Guimarães Rosa. Todavia, para falar de bondade da alma hoje não é necessário sacrificar a vida. Às vezes, muito, muito pouco, quase nada, bem menos, já pode significar muito. Ainda mais em tempos de lentes 3D. Um homem, ainda apaixonado, acompanha a ex-noiva em viagem para outra cidade, onde ela encontrará o seu novo amor. Ou os amantes moradores se amam nas casas de taipas com portas de cipó, no nordeste brasileiro. Lá, pode faltar de tudo, mas não falta um abraço em forma de nó. Os numerosos voluntários que ajudam os refugiados na Europa, por vezes, violam as leis do seu país e sofrem, eles próprios, repressão e processos. Dezenas de grupos se reúnem para salvar animais de rua, gente ainda não tomada pela cegueira moral. Enquanto isso, outras almas nobres distribuem o “sopão da madrugada” para os moradores das praças de uma cidade qualquer. Nobre seria um jovem ganhar um concurso importante e renunciar em favor do segundo lugar, quando descobre se tratar de um pai com muitos filhos e, por razões da idade, é a última chance para ele. Nobre seria um jogador de futebol dizer ele mesmo ao árbitro: eu estava em posição irregular quando marquei o gol. Quem sabe seria mais fácil explicar a nobreza da alma com exemplos ao invés de definições. Pois tem muito a ver com a generosidade. Humildade. Com coragem também. E agora sabemos, a ALMA NOBRE não depende de classe social, do país, da etnia, das opiniões políticas, do sangue azul, vermelho ou rosa… Nas ditaduras, os resistentes precisam fugir e se esconder. E encontram a solidariedade não nos próprios companheiros, e sim em pessoas estrangeiras e desconhecidas. Muitos combatentes ajudam os inimigos porque se comovem com o destino humano (Wilem Hosenfeld – representado em O pianista, de Roman Polanski). Assim como um comerciante às vezes oferece alimentos a quem nem água tem no pote. A nobreza da alma revelada na humildade de São Francisco de Assis, o protetor dos animais — “como pode haver tanta injustiça, tanto luxo, ao lado de tanta pobreza?”. No geral, em tempos difíceis, nas guerras e catástrofes é mais comum encontrar pessoas que dão o melhor de si. É como se o perigo estimulasse a generosidade. E quem sabe seja mais fácil encontrar um jornalista que arrisca a vida numa ditadura para publicar um artigo crítico ao governo, do que um jornalista na democracia que arriscaria, unicamente, a carreira por uma crítica aos “donos do poder”. Eu poderia continuar com uma longa lista, porque cada dia se fazem tantas ações nobres, e as mais lindas são as que ficam anônimas, quando os beneficiários não sabem quem fez a boa ação, quem fez não foi se “amostrar” nas redes sociais. Generosidade, boas ações, ego, narcisismo, anonimato, coragem, bondade. Contradições. Pessoas que dedicam a vida a uma grande causa, visão macro, sociedade, e pessoas como Regina Célia Zanetti, que além “do todo”, enxergava também o micro, o pequeno, o menor de todos. Era luta e era luz, toda a luz que nem todos conseguem ver. Célia Coragem e Bondade. Discreta, quase anônima é sinônimo de nobreza humana. Mas, caras leitoras e caros leitores, certamente vocês conhecem outros atos nobres, pequenos e grandes. Para o benefício de todos, porque não nos contam aqui? ![]()
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Respostas de 3
Muito sublime a visão da jornalista em relação à nobreza da alma. Com certeza os maiores atos de nobreza são os que permanecem no anonimato, não carece de divulgação em redes sociais.
Fantástico!
Uma escritora que sabe dizer as palavras com exatidão e claridade. Parabéns