Cheiro de Gengibre – Iris Cavalcante

 

30 graus. Um céu de um verão perene anuncia que estamos na cidade do sol. Refugio-me à sombra de uma árvore na praça do sonho. Alguns metros quadrados de areia, uns quatro bancos de madeira e um balanço de pneu. Cavalo de troia. A criançada brinca como se estivesse num parque de diversão. Tem algazarra e euforia. A praça é do sonho. 

Há crianças e jovens e adultos. Alguns jogam baralho, descomprometidos com o relógio, sem cartão de ponto a bater. Dinheiro para a aposta. Se der fome, tem a bodega da dona Chica que vende bolo, salgado, sai até um “bauru”. Coisa fina. Assim, a vida transcorre numa quase liquidez, no sobe-e-desce do lugar. Meninos sem blusa, queimados do sol, jogam piões.

Da casa bonita da esquina sai um cheiro de gengibre. Um gatinho abandonado se encolhe na soleira da porta; ali mesmo, faz um lar. Hora do almoço e ele mia. A mulher da casa bonita caprichou, é aniversário da filha de 10 anos. Vapor na panela. Casa de tijolo, janela, porta, telhado, uma casa completa. Casa de elite. Tem até uma planta em lata e um Sagrado Coração de Maria, bem na sala.

A mulher da casa bonita que tem uma planta sustenta os cinco filhos com o salário de ajudante de cozinha num restaurante de bacana. Foi lá que ela aprendeu a receita que leva o gengibre. Gosto exótico. Aprendeu essa palavra também e agora deu para uns pensamentos exóticos, às vezes eróticos. Ela é quem sabe viver. Depois que o marido abandonou a família, ela nem teve tempo para as sofrências, não podia deixar os meninos morrerem de fome. Ou sofria ou sustentava os filhos. Uniu-se a um rapaz de 22 anos, que está no seguro desemprego — ele justifica sempre que traz algo para casa. Ela, aos 40. Arrimo de família. Logo, engravidou do quinto filho. Desconstruiu padrões. Ela sabe ser sensual, mesmo com uns 20 quilos a mais. Uma mulher que se permitiu amar. Julgaram-na. Mas ao homem que abandonou a família, não.  

Do outro lado da rua, uma placa em metal resplandece sob uma claridade cirúrgica e indica o nome do lugar. A lagoa que já foi campo de futebol invade as “palafitas”. Pedaços de madeirite, barrote ou flandre compõem as paredes, amianto no teto. Não é de Deus viver nesses casebres, sensação de espaço conseguido, que se pode perder a qualquer momento. O esgoto escorre ao lado. Pior quando chove — dizem — tudo vira lama. Pela janela do barraco, avisto um casario assimétrico do lado de lá, um mundo que filtro a partir do que vejo.

Me dá vontade de entrar com um violão, cantar um refrão qualquer. Talvez a música embeleze o cenário. Ou alegre a mulher doente que jaz numa rede. Pneumonia. Quero entrar ali, com o que aprendi das artes.

Roupas coloridas secam num varal rente à pele de um muro. Uma catita corre para lado nenhum. A mulher da casa bonita, que tem uma planta e que sabe ser sensual atravessa a rua com um vestido transparente. O sol trespassa o vestido, que se levanta ao vento e revela suas coxas roliças. Ela leva comida com cheiro de gengibre para a mulher com pneumonia. Irmandade feminina.

Messias e Micael brincam com seus piões. Irmãos quase gêmeos. tão próximas que são as idades. O Messias tem uma tal ternura de menino carente e me beija como a uma velha conhecida. Me chama de tia e eu gosto. Me sinto tia de Messias. Vontade de cuidar dele, protegê-lo das maldades de alguns. Mas como, se mal dou conta dos meus fazeres diários? Ali, tenho um afeto natural por ele. Micael maneja bem o pião, tem cabelos descoloridos e uma energia que parece luz. Um calção amarrado por um elástico e uma blusa que encolheu com seu crescimento deixam o umbigo à vista. Disseram que era perigoso ali. Messias e Micael mostraram o contrário. Me sinto em débito com o futuro deles. Um débito que não posso pagar no cartão, nem em cash. 

Mais na frente, uma universidade. Os doutores aparecem, prestam algum serviço que deve pontuar para o lattes e somem. Em julho, tem uma micareta lá perto. Aquece a economia, a classe média consome no morro.

Já é meio-dia. Volto semana que vem — digo assim meio migrante. Cigania. Uma terça-feira e reencontro a mulher da casa bonita que tem uma planta e sabe ser sensual com seu vestido transparente. Nos juntamos a outras de nós e descobrimos que a nossa voz é a mesma. Uma me fala do olho roxo, a outra me conta da alma ultrajada. Narrativas que escapam da loucura nossa de cada dia e se encontram num lugar chamado Gengibre. Um lugar esquecido na cidade do sol. Nesse dia sou feliz.

 

Sobre o autor:

Compartilhe este artigo:

Cheiro de Gengibre – Iris Cavalcante