Sem falar que corri o risco de morrer apenas uma vez,
enquanto meu assaltante possivelmente já estará morto
no momento em que esse prestigioso jornal publica esta.”
[Millôr Fernandes, em Otlassa*, 100 FÁBULAS FABULOSAS
– Rio: Record, 2003; pág. 168].
– Chegou a tua vez, vacilão!
Passavam uns dez a quinze minutos do meio-dia de um domingo modorrento, com o teto celestial encoberto por compacta massa acinzentada, inerte, prostrada, com um sol desfigurado, de raios escoados – anêmicos, pois – e absurda inexpressividade, com árvores entorpecidas cujos galhos adormecem ao completo sumiço de ventos que naturalmente os açoitavam, tudo isso compondo um sonolento quadro repleto de desânimo, indolência, letargia… preguiça, enfim!
Antes de sair de casa, ele cuidou de ligar para o restaurante de sua preferência e fazer o já tradicional pedido dominical:
– Filé de frango à parmegiana, com arroz branco e purê… não, eu mesmo apanho… pagamento em dinheiro… isso… com dez por cento de desconto… uns vinte e cinco minutos? Ok!… Obrigado!
Consultou a carteira de notas e percebeu que ela estava meio desprovida do vil papel.
Decidiu, então, alterar o percurso usual, passar por um supermercado próximo e, no autoatendimento 24 horas, recompor sua capacidade monetária.
Sem perceber, acabou seguindo um outro trajeto, o comumente utilizado quando vai à compra de garrafões de água para consumo doméstico, ao encerramento de jogos em agência lotérica ou à realização de operações bancárias em dependência de instituição financeira com que há décadas mantém relacionamento do gênero.
Por onde passou, percebeu pouca movimentação de carros, quase nenhuma presença de humanas vidas, um silêncio quase absoluto, uma calmaria perturbativa: uma cidade sem vida pulsante, de ruas e avenidas nuas, vazias, desertas.
Estacionou o carro ao lado de um tradicional e popular restaurante de esquina, especializado em pratos à base de frutos do mar, de rios, de lagoas, de açudes – ou seja, de água salgada ou doce –, com um forte cheiro bem característico e baixa freguesia para o dia e a hora.
Atravessou calmamente a avenida, adentrou a área do autoatendimento da agência, não se perturbou ante o vazio com que deparou lá dentro, conduziu com tranquilidade suas operações: saldo de conta, extrato de investimentos, transferência de recursos desses pr’aquela, saque de baixo valor. Pôs as cédulas e o cartão na carteira de notas, devolvendo-a ao bolso traseiro da bermuda azul. Quando se dirigiu ao balcão central para acomodar os impressos em envelope de depósito, percebeu a presença nervosa de um jovem na máquina vizinha à que houvera utilizado. Manteve-se tranquilo. Demorou-se um pouco, até que o viu sair pela porta de vidro e sumir no nada quase absoluto da larga avenida.
Refez o trajeto a pé. Verificou que, nas duas bem próximas estações de ônibus – uma à direita, outra à esquerda –, na via central da avenida, pessoas aguardavam os respectivos coletivos. Nada mais que isso.
Ao aproximar-se do Ecosport, acionou o sistema de destravamento das portas. Abriu, ao máximo, a que lhe daria acesso ao interior do veículo. Jogou o pequeno envelope no banco do carona. Ouviu, então, a voz juvenil e ameaçadora.
Comportara-se, sim, como um “vacilão”.
Inaugurava-se, assim, a sua primeira vivência sob a ameaça de assaltantes.
Calma, nesta hora! Virou-se na clássica posição de “mãos ao alto”. Três jovens – adolescentes na faixa de quinze anos – bem parecidos, bem vestidos, amadores na arte de assaltar, encurralaram-no. Pela direita, um deles exigia que lhe entregasse a chave do carro; pela esquerda, outro tentava sem sucesso retirar a carteira de notas do bolso traseiro de sua bermuda azul; o terceiro, bem à sua frente, repetia incisivamente: “Passa tudo! Passa tudo, vagabundo!”. De repente, surgiu, por trás deste, o quarto jovem, com idêntico perfil e com arma de fogo em punho.
O olhar panorâmico do indefeso idoso fê-lo perceber, apesar da tensão do momento, da pressão que os quatro exerciam sobre ele, que todos estavam desarmados, pois o único revólver usado na operação – e apontado para seu rosto à distância de não mais de um metro – era de brinquedo. Não lhe restava a menor dúvida. [Ó Razão, por que me abandonaste?!]. Reagiu. [Ó Emoção, por que sempre cismas de assumir o comando?!]. Um murro à altura da boca do marginal à direita, levou-o a bater com a nuca na estrutura alta da porta aberta e cambalear; um chute no tórax do marginal da esquerda fê-lo engatinhar em pleno asfalto; um forte empurrão no peito do marginal à frente jogou-o de encontro ao que portava a arma de brinquedo. Ouvindo um deles gritar “Atira nele! Atira nele!”, desvencilhou-se da armadilha que lhe fora imposta e pensou escapar pela frente do carro, cuja porta aberta atraiu um deles que, ao perceber não estar a chave na ignição, desistiu e saiu correndo em fuga, logo seguido por dois dos comparsas. Na calçada, o do revólver de brinquedo agia como se pretendesse destravar a arma, sem, obviamente, conseguir.
O agora quase-assaltado ancião, ainda sob o olhar agastado da Morte, passou correndo bem próximo dela, ainda embaraçada ante o improvável enfrentamento de sua presa. Entrou no restaurante onde uma dúzia ou pouco mais de pessoas, entre clientes e garçons, assistiram aparvalhados a toda a cena – ação e reação. Agora em estado de choque, mereceu a atenção de todos: uns o confortaram com gestos e palavras – “Deus o salvou!”, por exemplo –, outros o elogiaram pela coragem – “Amigo, gostei de ver!” – e outros o criticaram por haver colocado a vida em risco – “Nada vale mais que a vida! Por que arriscar?!” –; um gentil funcionário da casa o acudiu com um copo d’água.
Acalmou-se. Ao levantar-se para retomar o curso normal da vida, ouviu o estampido; alguém disparara uma arma de fogo ali pelas redondezas. Todos ouviram e, como autômatos, saíram até a calçada. Estremeceu ao ouvir um sussurro: “Olha aí o teu revólver de brinquedo!”. Era, sim! Um motoqueiro aproximou-se e noticiou o assalto ocorrido a uma quadra dali. Um quinto marginal se juntara aos demais e, mais agressivo que os outros, intimidara a sua vítima com um tiro para o alto, levando todos os seus pertences.
Alguns minutos depois, policiais em duas motos seguiram pela avenida, no encalço de um grupo de assaltantes.
Na manhã da segunda-feira, ao folhear o jornal, uma manchete de última página chamou-lhe a atenção: “Mãe de PM reage a assalto e é morta”. Era apenas uma anciã de 64 anos. Ato covarde… que poderia ter acontecido com ele, um idoso de 65…
Post scriptum:
É terminantemente desaconselhável a reação a qualquer tipo de assalto. O risco de perder a vida sempre é iminente.
Que esta crônica não sirva de estímulo a quem quer que seja!
Que a leiam apenas como um recorte de nossa crucial realidade… nada mais que isso!
Quase me tiraram a oportunidade de escrever esta crônica. E de tantas outras mais. Quase!
“Esta não é uma carta de protesto pelas condições da violência vigente nesta cidade,
mas um agradecimento público aos privilégios da minha vida.”
[Millôr Fernandes, em Otlassa*, 100 FÁBULAS FABULOSAS
– Rio: Record, 2003; pág. 168].
* Assalto às avessas.
Respostas de 3
Luciano é um intelectual que gosta de contar as cenas reais da vida. Parabéns pela crônica.
Generosidade sua, Raimundo Suevan, amigo desde quando Caucaia me acolheu como filho do coração, lá pelos meados da década de 1970. Curto muito a sua página – SOURE CAUCAIA – no facebook, espaço em que vem se revelando como cronista e contador de “causos” de sua tão querida terra natal. Um abraço fraterno.
Generosidade sua, Raimundo Suevan, amigo desde os tempos em que Caucaia me recebeu como filho do coração, lá pelos meados da década de 1970. Curto muito a página – SOURE CAUCAIA – que você mantém no Facebook, espaço onde vem se revelando um cronista e contador de “causos” de sua querida terra natal. Um abraço fraterno!