Cena Brasileira

De gostar tanto, voltei ao Cena Brasileira, belíssimo livro de Osvaldo Araújo. Evidencio que se trata de um trabalho de personalidade, com a marca estilística de um escritor que transita com notável intimidade pelo delicado território que separa a crônica do conto.

Mas, diferentemente do que ocorre sempre que se tenta equilibrar entre a fugacidade do primeiro e a permanência do segundo, de cuja indefinição é comum o empobrecimento estético da matéria textual, Araújo revela no trato da linguagem e na arrumação do discurso uma habilidade que resulta elegante e leve, sem incorrer no uso de artifícios formais que deem a ver qualquer esforço. Antes pelo contrário, seu texto é a um só tempo refinado e sedutor, tem o gostoso do pitoresco e do irrisório e a profundidade da percepção da realidade humana, política e social do país. Por isso, apoiando-se no cotidiano, no que poderia existir de simplesmente circunstancial e episódico, na linha do que fazem os nossos melhores cronistas, Osvaldo Araújo fornece-nos com o seu livro mais recente, já muito interessante a partir do título, Cena Brasileira, um exemplo claro e feliz de como transitar da ambiguidade, da subjetividade e da ausência do transcendente, próprios da crônica, para o conteúdo em alguma medida dramático do bom conto, retirando do anonimato, por um flash que seja, a personagem em torno da qual se desenvolve a sua narrativa. Exemplo notável disso, coisa preciosa mesmo, enquanto literatura, é a Cena 2 do livro, intitulada ‘O Pobre’.

O primeiro parágrafo do conto é digno de nota, quer pela leveza da forma, a harmonia do léxico e o depurado do gosto, que sinto-me provocado a citá-lo, embora longo: “Acordo pelas cinco, tomo uma xícara de café com pão e manteiga, vou prender os cachorros e botar para eles comida nova e água fresca. Depois passo pelo galinheiro e faço a mesma coisa pra vinte franguinhos e dois galos, aproveito e recolho os ovos. Dia sim, dia não, cuido da piscina, varro e lavo a varanda da casa, escolho um pedaço de terreiro que tem de ciscar, alguma estaca da cerca pra aprumar e olho com atenção pra tudo que é lado em busca do que há pra fazer depois — prefiro ver eu mesmo, antes de o patrão notar e me cobrar — nas coisas de água, de energia, da casa, das plantas, do patrão, tudo é comigo. É terra para uns 25 hectares, mas tudo que importa se concentra em menos de três hectares — casa, piscina, jardim, canil, galinheiro, caixa d’água, varanda, garagem e outras coisinhas”.

Está retratado o espaço, delimitado o tempo, traçado o perfil psicológico da personagem, um caseiro de sítio. Vê-se, em que pese a simplicidade da linguagem, o homem de bem, atento à sua missão, à responsabilidade do ofício de que retira seu sustento e dos seus.

Com o desenvolvimento da narrativa, o leitor vai ombreando-se à personagem, cuja realidade se transforma nos anos de governo popular que se estendeu de 2003 até por volta de 2016. Tudo isso, no entanto, sem que qualquer referência seja feita ao calendário e ao partido sob o qual foi dada ao pobre homem a oportunidade de formar os filhos, a mais velha “doutora de Pedagogia, tem emprego digno e salário mais que o triplo do meu”, os outros três cursando escola profissionalizante em tempo integral.

Na contramão do que seria esperado, e tão usual em histórias do gênero, o patrão foge ao estereótipo da luta de classes, é sensível ao que existe de justo e de humano nas conquistas do caseiro: “A corrente foi quebrada, falou o patrão — meu filhos e os filhos deles não serão como meus irmãos e meus pais, nem como eu”.

Mas o caseiro, como os demais frequentadores da igreja do lugar, é pressionado pelo pastor a “fechar os olhos para os benefícios que o povo teve, calar a boca e continuar votando neles”, mudando de governo: “Foi aí que eu pensei na história da corrente”, é como termina o conto, num arremate que é mesmo o que existe nele de essencial, de mais significativo do ponto de vista do conteúdo: a postura crítica de um homem do povo diante da realidade.

Assim — com os méritos estruturais que se repetem em cada uma das 26 cenas constantes do livro —, do ângulo dramático, pode-se dizer que o texto traz as características do conto, é unívoco, pautado pela unidade de tempo e de espaço, com poucas personagens (o ponto de vista é o do caseiro), e quase nenhuma descrição ou narração, a cena desliza do banal, do corriqueiro, de onde extrai a essência do que transcende os limites do cotidiano, para conduzir-nos a uma reflexão vertical da vida de um povo, da realidade de um país.

Um livro interessantíssimo este Cena Brasileira, de Osvaldo Araújo!

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica