O final do mês de agosto não foi de todo ruim. Fomos presenteados com mais uma nova obra-prima de um dos maiores intérpretes do Brasil, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque de Hollanda.
Seu novo trabalho intitula-se As Caravanas. Uma refinada viagem metafórica pelo tempo presente brasileiro, do Brasil aristocrático azul turquesa de Copacabana ao Brasil escravo negreiro do Arará, miscigenado pelas cores mulçumanas nacionais tão bem estudadas por Gilberto Freyre: morenos são aqueles mouros brasileiros, jogados à sorte da desnutrição e do analfabetismo. Para os de sangue azul turquesa, o “mourenos” são diabos que devem ser condenados à fogueira da santa inquisição. Devem ficar confinados em suas senzalas e jamais sentirem o ar puro do mar azul das Copacabanas. É assim que se tratam os pretos, como podres, diriam Gil e Caetano. Diversos pesos e diversas medidas para os filhos de uma mesma nação.
Sob a estrutural batuta da discriminação, o Brasil vai segregando sua população para distribuir desigualmente os resultados de sua atividade econômica, política, jurídica e cultural. Para ajudar-nos em nossa reflexão vamos fazer uma viagem no tempo e voltar para o dia dezenove de maio de 1997, vinte anos atrás. Os três principais jornais impressos da época destacavam naquela data um fato de repercussão nacional: a compra dos votos por parte da Presidência da República para aprovar a emenda constitucional que lhe garantiria a possibilidade de sua reeleição.
O jornal O Globo grafava: “Bastou o presidente Fernando Henrique Cardoso entregar o ministério dos Transportes e da Justiça a Eliseu Padilha e Íris Rezende, e os peemedebistas fizeram as pazes com o governo. O presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), Eliseu e o líder do PMDB na Câmara, Geddel Vieira Lima (BA), fecharam neste final de semana a estratégia para abafar o escândalo das denúncias de compra de votos na votação reeleição”. Note-se que o jornal não destaca este fato como corrupção, nem mensalão ou coisa parecida. Para o jornal foi um mero escândalo, coisa de sangue azul: um escândalo a mais.
Já o Estado de São Paulo afirmava que “o Governo vai agir nesta semana para tentar reverter os prejuízos causados pelo escândalo (novamente um mero escândalo) da compra de votos para aprovar a (sua) reeleição”.
E a Folha de São Paulo completava a trilogia enfatizando que “o deputado Severino Cavalcanti (PPB-PE), presidente da comissão que investiga a compra de votos para a aprovação da reeleição, disse que seu trabalho está sendo prejudicado pelas pressões do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP): Quero chegar ao fundo do poço, mas ele quer uma conclusão para esta terça-feira, afirmou”.
Tudo às claras, tudo à luz do sol do meio-dia, tudo fotografado e noticiado. Mas nem polícia federal, nem o engavetador-geral de então mexeram uma única palha para verificar o que havia por trás e por debaixo dos panos. Este é apenas um dos numerosos escândalos apontados pela imprensa de então em relação aos oito anos de governo do PSDB. Para os de sangue azul, tudo; para os de sangue vermelho comum, o império da lei elaborada pela oligarquia.
Mas Chico nos deixa uma esperança, aquela de quem nunca a perdeu, nem desanimou na luta. Na faixa Tua Cantiga ele discorre sobre um alguém apaixonado que não desiste de sua paixão: “Se o teu vigia te alvoroçar, estrada afora te conduzir, basta soprar meu nome, com teu perfume para me atrair. Se as tuas noites não têm mais fim, se um desalmado te faz chorar, deixa cair um lenço que eu te alcanço em qualquer lugar”.
Em busca da democracia, alcançá-la onde quer que ela esteja, essa é a caravana de todos aqueles e aquelas apaixonados por uma nação diferente de tudo isto que aí está desde que o Golpe institucional foi perpetrado.