CANDIDATOS DESTRUIDORES DA DEMOCRACIA?

Sem dúvida, a pergunta que dá título ao presente artigo corre o risco de revestir-se de respostas simplistas, além daquelas movidas por interesses ideológicos, voltadas para responsabilizar segmentos da população pela ausência de uma visão mais aprofundada dos contextos e correlações de força que condicionam o processo político democrático como um todo, como se a democracia se reduzisse unicamente ao momento do voto, sem levar em questão a desproporcional distribuiçãohistórica e estruturalde poder entre os indivíduos e grupos, dentro e entre as instituições, sobretudo em diversos países da América Latina, por meio das quais são construídos cenários em torno do imaginário social voltados para condicionar a percepção política dos eleitores segundo os interesses dos poderosos grupos econômicos.

Em seu recente estudo Polarization versus Democracy (2019), o professor de ciência política Milan Svolik, da Universidade de Yale, nos EUA, coloca o tema em questão, trazendo algumas importantes luzes para o debate, apesar de apresentar uma avaliação um tanto reducionista em suas conclusões finais, a nosso ver, por não analisar em profundidade as condições dos cenários específicos em que os eleitores exercem sua soberania democrática, conforme aqui acenado no parágrafo acima.

O eixo central de sua discussão é a polarização política. Esta, segundo o autor, mina a capacidade do público de servir como controle democrático, uma vez que eleitores polarizados estariam mais voltados em garantir seus interesses particulares, mesmo que em prejuízo de princípios democráticos, favorecendo assim a eleição de candidatos autoritários capazes de promover retrocessos diversos.

Segundo o estudo, duas questões são fundamentais para a ascensão de políticos autoritários ao poder. Em primeiro lugar, esses políticos devem desfrutar de amplo apoio popular para apoderar-se do poder executivo nacional, utilizando-se do formalismo democrático eleitoral para lhe dar a aparência de legitimidade em sua eleição.

Para isso, como segunda questão decorrente,precisam investir na tensão social, com o objetivo de gerar uma fidelidade emocional”, pela qual os seus partidários preferem tolerar e apoiar suas manifestações autoritárias – e mesmo violentas – do que votar em políticos que já demonstraram pleno e total compromisso com o regime democrático, mas cujas imagens e as de seus partidos políticos foram intensa e estrategicamente denegridas pelos meios de comunicação social e pelas instituições coniventes com o candidato autoritário. Quanto mais profundas e extremas forem as polarizações políticas de uma sociedade, mais o candidato autoritário se beneficiará dessa polarização. Portanto, trata-se de criar as táticas de abominação dos seus adversários no imaginário social.

No século passado, os golpes de Estado se caracterizavam por ser golpes militares clássicos. Svolik lembra que no final dos anos 1960 e início de 1970 uma série de pesquisas acadêmicas realizadas nas três maiores cidades do Chile indagava a eleitores o que achavam de um governo militar. Cerca de 80% responderam com um “NÃO”, preferindo todos eles a pluralidade do sistema democrático, orgulhosos de em seu país haver uma democracia plena. Mas em setembro de 1973 um golpe militar assaltou o poder, criando uma das ditaduras mais sanguinárias, repressivas e autoritárias do século XX. Contudo, essa ditadura não foi uma escolha dos 80% de eleitores chilenos pesquisados. Pergunta-se: como esses eleitores comuns e desarmados poderiam resistir aos canhões do general Pinochet, com seu grupo de golpistas, para manter a democracia chilena?

Também nos anos 1970, a crise do “milagre brasileiro” empurrou o novo sindicalismo nascente no ABC paulista para a luta política contra a ditadura militar brasileira instalada com seus canhões dez anos antes da ditadura chilena, em 1964. Essa ação política dos trabalhadores do ABC paulista desaguou na formação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 10 de fevereiro de 1980. Aliadas ao PT estavam muitas outras instituições da sociedade brasileira, na luta pela redemocratização, entre estas destacamos a Igreja Católica, sob a liderança de Hélder Câmara e Paulo Evaristo Arns, juntamente com o MDB, o partido político oficial de oposição, que deu abrigo às diversas expressões de oposição no Brasil, sob o comando de Ulysses Guimarães. Era o gérmen de um novo Brasil que nascia politicamente. E em primeiro de janeiro de 2003, o ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva, tornava-se Presidente do Brasil pelo Partido dos Trabalhadores. Um marco inédito na história brasileira.

Em 31 de agosto de 2016, na condução da presidência do Brasil, no quarto mandato consecutivo eleito democraticamente pelo povo brasileiro, o Partido dos Trabalhadores foi vítima de um Golpe Parlamentar que cassou o mandato da presidenta Dilma Rousseff. O Golpe desta vez não se deu pelos canhões nem baionetas; mas pela articulação de um amplo conjunto de forças institucionais dominantes do Estado e da Sociedade – meios de comunicação; igrejas; capital financeiro, agrário e industrial; setores das forças armadas; setores do dos poderes judiciário e legislativo – primeiramente produzindo aquilo que o professor Milan Svolik atestou em seus estudos: “a abominação dos políticos e dos partidos diante da opinião pública, por meio de uma articulação jurídico-midiática, visando à polarização da sociedade brasileira. Diante deste cenário, pode-se em seguida instalar um novo comando golpista na condução do país. Pergunta-se: como os cidadãos e cidadãs comuns, sem ocuparem espaços de poder, poderiam impedir esse novo tipo de golpe articulado institucionalmente?

Portanto, a chegada do bolsonarismo ao executivo federal em 2019, como também de outros personagens autoritários da cena pública mundial contemporânea, não é culpa do voto de cidadãos comuns, como o estudo do professor Svolik tende a indicar. É preciso uma compreensão capaz de identificar os processos, as forças e as armadilhas envolvidas nas decisões de poder. É necessário também buscar ampliar o horizonte conceitual do que sejam as democracias contemporâneas, que não podem ser reféns de concepções que as designam como meros regimes autorizativos.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .