BOLSONARO, DORIA E A GUERRA DAS VACINAS.

Machado de Assis, um dos gênios da literatura brasileira, cunhou a seguinte frase: “[…] os adjetivos passam e os substantivos ficam. Apesar de simples e direta, de tão repleta de significados, não só para a língua, essa frase não abre espaço para contestação ao pensamento machadiano. Monteiro Lobato nos ensinou que “[…] o adjetivo é escasso e sóbrio”, “deve ser usado com pão-durismo”. Sob o ponto de vista da escrita em linguagem culta, sobra claro quena árdua tarefa da produção textual, mesmo em um simples artigo para jornal, há que se evitar os exageros no emprego dos adjetivos.

Com todas as vênias de duas das nossas maiores referências literárias, cada um a seu tempo e estilo, esse esforço de ser “pão-duro no uso do adjetivo torna-se nulo, em vão, quando a personagem sobre a qual se escreve é um certo Presidente, de estilo “macunaímico”, dessas bandas dos trópicos, cercado de malfeitores por todos os lados, se o leitor me permite o uso desse eufemismo para designação de corruptos, adjetivo que foi corrompido; que sofreu corrupção, cujo conceito foi relativizado nesses tempos de “Brasil acima de tudomeus filhos acima de todos”.

Agindo como menino birrento, o que não constitui novidade, o presidente Jair Bolsonaro, respondendo indiretamente ao governador de São Paulo, João Doria (ambos sofrem da escassez de recursos mentais), no início da semana, surpreendeu o Brasil, e ao mundo (ele ainda consegue), com outra de suas declarações genocidas, quando afirmou que “[…] nenhum brasileiro será obrigado a tomar qualquer vacina contra o coronavírus”; e, com um sorriso irônico de canto de boca e em tom ameaçador, para o aplauso dos áulicos que compunham a audiência, arrematou:“[…] mesmo porque quem autoriza campanha de vacinação é o Ministério da Saúde, e quem aprova vacina é a ANVISA. Disse o óbvio, e seria preocupante se não fosse assim! Depois da cloroquina, a guerra das vacinas.

Quando se examina o histórico do comportamento do Presidente, durante a pandemia, especialmente na fase mais aguda do processo de transmissibilidade da doença, suas últimas declarações não apenas ratificam sua atitude errática em relação à covid-19, como sugerem, se não a proibição do uso das vacinas, no mínimo desestimula a população, a se vacinar, e dar indicações de que pode retardar propositadamente aprovação das vacinas em fase de testes, pouco se importando com o agravamento da pandemia.

Imaginar que a motivação dessa atitude que adentra a irresponsabilidade, é por birra contra ogovernador João Dória, seu desafeto político, porque esse havia anunciado para janeiro o início da vacinação contra o coronavírus em seu Estado. Isto,além de muito trágico, é a prova de que o ocupante do Palácio do Planalto sofre de atrofia político-mental.

Registre-se o fato de que essa declaração de caráter eugenista representa uma grave ameaça à saúde de milhões de brasileiros e confirma, mais uma vez, seu desprezo pela vida humana, evidenciando que pode estar em curso um boicote aos esforços e estudos científicos, bem como aos bilionários investimentos financeiros que o mundo inteiro está fazendo, inclusive o Brasil, para produzir uma vacina, pois, a julgar pelas afirmações do Presidente, pelo menos no curto prazo, poderão ter sido em vão para o nosso País, se prevalecer essa sua mórbida vontade.

Tal atitude não surpreende pela ignorância, pois de há muito se sabe que o Presidente ignora que é ignorante, mas, também pela ratificação do negacionismo à ciência, mesmo depois de todas as consequências produzidas pela pandemia, com centenas de milhares de mortes, e a pauperizaçãoeconômica e social, de significativo contingente da população.

Para provar que não estava blefando como de outras vezes, em menos de 24 horas, após o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciar a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac, do laboratório chinês, produzida pelo Instituto Butantã em São Paulo, o Presidente, se dizendo traído, sem citar por quem, determinou a suspensão da compra, desautorizando o seu Ministro, perante a Nação, e mais uma vez ratificoua sua intenção de não realizar qualquer campanha de vacinação em massa como era o esperado.

Ante essa ameaça à saúde pública, a comunidade científica brasileira, os partidos políticos, a CNBB e a sociedade civil, em geral, têm o dever de acionar à justiça contra essa ação do Governo e até aos tribunais internacionais, para impedir esse boicote que o presidente Bolsonaro está promovendo contra a vacina, que, por extensão, significa sabotar a ciência, desperdiçar os recursos da Nação, e pôr em risco a saúde de todo o povo brasileiro.

Não é sem propósito lembrar que foi, desde a ascensão do mandarinato bolsonarista ao poder, que teve início uma ação criminosa de desacreditação das vacinas, corrompendo a histórica crença da população em sua eficácia, constituída com muito trabalho e pesquisas científicas, iniciada pelo médico Oswaldo Cruz, ainda no século XIX, e consolidada no século XX (saibam os ignorantes do governo que essa atitude é uma das piores modalidades de corrupção), repercutindo na diminuição da cobertura vacinal, fazendo recrudescer algumas doençascomo sarampo e catapora, que haviam sido erradicadas no País.

Por insuficiência cognitiva e interesses inconfessados, é como se o Presidente estivesse querendo reeditar a revolta das vacinas, ocorrida de 10 a 16 de agosto de 1904, no Rio de Janeiro, quando a população saiu às ruas para protestar contra a vacinação obrigatória para combater a varíola, durante o governo do Presidente Rodrigues Alves.

A propósito dessa negação à ciência e da tentativa de corromper a cultura de acreditação da população nas vacinas (para eles, corrupção se resume ao pagamento e recebimento de propina),nesse governo, o conceito de corrupção foi relativizado de tal maneira que vale citar alguns exemplos. O coronavírus, com toda sua letalidade,foi considerado apenas uma “gripezinha”, o que fez corromper em grande parcela da população a ideia da gravidade sobre a doença, provocando o descumprimento ainda vigente de não aglomeração e do uso de máscara, o que, com a retomada das atividades econômicas, cria as condições para possível segunda onda, como ocorrente na Europa.

Falam por si a prática das rachadinhas, as altas somas em depósito nas contas bancárias do Queiroz, da sua esposa e filhas, em tempos recentes; a produção e disseminação de fake news em massa, para manipulação das pessoas menos informadas na vã tentativa de construir a falsa imagem de um governo de vestais; a circulação de dinheiro em espécie sem comprovação de origem, entre pessoas da antessala do Gabinete Presidencial, e de líderesno Congresso.

Para confirmar essas práticas nem um pouco lisonjeiras, a última novidade foi o lançamento, pelo senador Chico Rodrigues, de uma nova tecnologia para contar e guardar dinheiro, popularizada com o sugestivo nome de “nádegas-cofre”. Esses são apenas alguns exemplos contundentes da relativização da corrupção entre pessoas muito próximas do governo, e, como é consabido, algumas de dentro da casa do Presidente. Ainda assiminsistem em atentar contra a inteligência coletiva, quando afirmam combater a corrupção.

Em ditas circunstâncias, vale transcrever a definição genérica de corrupção editada pela Organização da Nações Unidas – ONU, que afirma:“[…] corrupção seria o abuso da função pública para ganho pessoal direto ou indireto – ganho indireto incluiria benefícios que alguém assegura indevidamente para a sua organização”.

E como dito por Machado de Assis, na frase com a qual início esse artigo, a corrupção é o substantivo que fica dessa realidade. Não é preciso dizer mais.

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Arnaldo Santos

Arnaldo Santos é jornalista, sociólogo, doutor em Ciencia Política, pela Universidade Nova de Lisboa. É pesquisador do Laboratório de Estudos da Pobreza – LEP/CAEN/UFC, e do Observatório do Federalismo Brasileiro. Como sociólogo e pesquisador da história política do Ceará, publicou vários livros na área de política, e de economia, dentre eles - Mudancismo e Social Democracia - Impeachment, Ascenção e Queda de um Presidente - sobre o ex-Presidente Collor, em 2010, pela Cia. do Livro. - Micro Crédito e Desenvolvimento Regional, - BNB – 60 Anos de Desenvolvimento - Esses dois últimos, em co-autoria com Francisco Goes. ​Arnaldo Santos é membro da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo – ACLJ, e da Sociedade Internacional de História do século XVIII com sede em Lisboa.

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Arnaldo Santos

Arnaldo Santos é jornalista, sociólogo, doutor em Ciencia Política, pela Universidade Nova de Lisboa. É pesquisador do Laboratório de Estudos da Pobreza – LEP/CAEN/UFC, e do Observatório do Federalismo Brasileiro. Como sociólogo e pesquisador da história política do Ceará, publicou vários livros na área de política, e de economia, dentre eles - Mudancismo e Social Democracia - Impeachment, Ascenção e Queda de um Presidente - sobre o ex-Presidente Collor, em 2010, pela Cia. do Livro. - Micro Crédito e Desenvolvimento Regional, - BNB – 60 Anos de Desenvolvimento - Esses dois últimos, em co-autoria com Francisco Goes. ​Arnaldo Santos é membro da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo – ACLJ, e da Sociedade Internacional de História do século XVIII com sede em Lisboa.