Que sonhos tão loucos, tão loucos, tão loucos/Tão loucos foi Bárbara sonhar
Ednardo, “Passeio Público”
Conta-se que o naturalista Arruda Câmara, nas suas andanças pelos sertões, praias e serranias nordestinas, pesquisando plantas e incutindo o fermento da insubordinação contra a colonização e a monarquia, na vila do Crato, considerou que a sua anfitriã, quando se estabelecesse a república, seria proclamada “heroína”. Depois, na sua carta-testamento dirigida ao padre Joao Ribeira, acentuou: “Sou dos agricultores que não colherei os frutos do meu trabalho, mas a semente […]. D. Bárbara do Crato devem olhá-la como heroína”. De fato, a história oral e parte da história oficial assim a consideraram, antes que, pela Lei nº 13.056, de 2014, o nome de Bárbara de Alencar fosse inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.
Nascida em Exu, no Estado de Pernambuco, em 1860, Bárbara passou, ainda na adolescência, a viver com a sua família na então Vila do Crato. Em 1782, casou-se com um comerciante português e foi mãe de João, Carlos, Joaquina, Tristão e José Martiniano. Faleceu em 1832, em território piauiense, para onde fugira em virtude da perseguição política decorrente da sedição de Pinto Madeira. Os seus restos mortais estão enterrados em capela no Distrito de Itaguá, no atual município cearense de Campos Sales.
Dois dos seus filhos, Tristão e José Martiniano foram figuras-chave nos movimentos que, de 1817 a 1824, tendo o epicentro em Pernambuco, fizeram do Ceará um ativo participante no movimento pela constitucionalização do pais. A quadra, extremamente movimentada, foi marcada por intenso processo eleitoral, inclusive, para as duas assembleias constituintes, a reunida em Lisboa a partir de 1821, e a outra, a realmente brasileira, inaugurada no Rio de Janeiro em maio de 1823 e dissolvida militarmente seis meses depois.
Não se pode olvidar o tributo em forma de perda de familiares, amigos e seguidores, de confisco de bens, de supressão da liberdade, de traição, humilhação e sofrimento imenso que a vida infligiu à matriarca Bárbara. Senão, veja-se tão-somente no que lhe diz respeito pessoalmente e à sua família mais estreita: a própria Bárbara, presa entre 1817 e 1820; os filhos Tristão e o padre José Carlos, presos em 1817 e assassinados em 1824; o irmão Leonel Pereira de Alencar e o sobrinho Raimundo Pereira de Alencar, assassinados em 1824 na Vila de Jardim; o filho José Martiniano, preso em 1817 e 1824.
Bárbara foi uma mulher do seu tempo e do depois do seu tempo. Matriarca, latifundiária, possuidora de escravos, profundamente religiosa, de um lado. De outro, a Bárbara republicana até o martírio, espargindo dignidade a ponto de recusar os favores da tirania. Cumpre anotar que, antes mesmo que o subdiácono José Martiniano Pereira de Alencar proclamasse a adesão da Vila do Crato às veleidades republicanas de 1817, merece destaque o envolvimento já de vários anos de Bárbara de Alencar com as ideias republicanas. Envolvimento oriundo tanto do trato com os filhos oriundos do Seminário de Olinda e com intelectuais e clérigos liberais como Arruda Câmara, quanto da convivência com pessoas em que aflorava o sentimento nativista, no Crato e em outras localidades dos Cariris Novos.
Por tudo, pode-se dizer que Bárbara de Alencar foi aquela mulher a quem a Escritura se referia: “A mulher forte quem a encontrará? É como um tesouro que vem de longe, dos últimos confins da terra”. No caso, foi a mulher cujos sonhos “tão loucos, tão loucos, tão loucos” lançaram sementes férteis de liberdade e república. Destarte, na oportunidade em que se comemoram os duzentos anos da Confederação do Equador, o nome, o exemplo e a ação política de Bárbara de Alencar não deixa de ser um farol para que se complete a Independência, até hoje deficitária.