Balzac e a liberdade nas montanhas chinesas

 

Quando Lev Tolstoi fala de adultério e culpa em Anna Karenina, quando Flaubert, em Madame Bovary, descreve o monótono da vida numa pequena realidade provincial e do desejo de evasão, quando Shakespeare fala de um amor proibido por razões sociais em Romeu e Julieta, eles nos falam de nós mesmos e das nossas vidas contemporâneas

 

Nestes dias de coronavírus, que se originou na China, novamente vem à tona a discussão sobre a grande diferença entre esta nação e o resto do mundo – que sejam os costumes alimentares, o autoritarismo do estado ou a atitude dos cidadãos, escolha como chamar, “disciplina” ou “docilidade” . Será que as grandes culturas humanas são realmente tão distantes, tão incompatíveis?  Não poderíamos nos colocar na mente de um chinês ou um chinês dentro da nossa cabeça?

 

A literatura – a grande literatura – tem  o privilégio ou o papel de permitir ou de facilitar este diálogo entre os seres que são humanos antes de ser chineses, brasileiros ou ingleses. Porque um jovem brasileiro, um morador de comunidades teria interesse pelos costumes da Rússia do século XIX (mais do que isso, por costumes aristocráticos) ou da vida numa pequena cidade francesa no mesmo século, ou como um inglês imaginava um amor proibido na Itália do século XIV?

 

Quando Lev Tolstoi fala de adultério e  culpa em Anna Karenina, quando Flaubert, em Madame Bovary descreve o monótono da vida numa pequena realidade provincial e do desejo de evasão, quando Shakespeare fala de um amor proibido por razões sociais em Romeu e Julieta, eles nos falam de nós mesmos e das nossas vidas contemporâneas. Eles nos ajudam a compreender o essencial dessas experiências, porque além das diferenças dos contextos históricos, o leitor pode compreender o que é comum a essas vivências, pode aprofundar a sua experiência, confrontá-la, ver o núcleo por trás das formas que mudam. Pode também descobrir que não está sozinho, que a sua experiência pessoal faz parte de uma experiência universal.  A boa literatura coloca o particular no universal e particulariza o universal. É por isso que a grande literatura se dirige a cada um(a). O belo dos verdadeiros clássicos é o falar de temáticas universais. Através do tempo e do lugar particulares, eles evocam algo que concerne todos os humanos, ou, ao menos, todos os humanos modernos que buscam o seu caminho sem ter nenhuma bússola.

 

Um bom exemplo de obras literárias que falam do poder da literatura é o livro “Balzac e a costureirinha chinesa”, de Dai Sijie, (França, 2000), com tradução portuguesa de Véra Lucia dos Reis.  O autor já vivia na França a quase vinte anos quando escreve, em francês, o seu primeiro romance (e assim com vários outros).  Antes, Dai Sijie realizou alguns filmes sobre temáticas chineses. “Balzac e a costureirinha chinesa” foi publicado em 25 idiomas e ultrapassou um milhão de exemplares vendidos. Por outro lado, na China foram muitos os obstáculos para autorização: e por lá, até hoje é considerado subversivo falar dos anos do maoísmo e da Revolução Cultural, embora a política atual seja o contrário da política daqueles anos. Depois, o próprio Sijie produziu uma versão cinematográfica do romance. E mais uma vez, assim como o livro, o filme teve grande êxito.

 

imagem do livro e do filme Balzac e a costureirinha chinesa

 

O relato desta obra é essencialmente autobiográfico. Dois amigos chineses recordam um período da juventude, entre os 17 ou 18 anos quando foram enviados para uma aldeia numa distante montanha em 1971, durante a Revolução Cultural. Para perder o caráter burguês, os jovens, filhos de intelectuais, seriam “reeducados” pelos camponeses quase “analfabetos” e bem desconfiados. Na ocasião, as universidades fechadas e quase todos os livros antigos proibidos. Mesmo assim, os dois amigos conseguem ganhar a confiança dos camponeses, sabe como?

Contando histórias de filmes e livros e tocando violino. Um dia, os jovens descobrem um baú de livros – o tesouro escondido pertencente a outro jovem, antes deles, obrigado a viver a sua “reeducação” no alto da montanha. E o que continha o baú? Clássicos europeus como Balzac, Dumas, Flaubert, Baudelaire, Rousseau, Dostoievski, Dickens. O fato é que mostrando o conteúdo destes livros, e principalmente os de Balzac, os amigos ganham também o amor da filha do costureiro e conseguem finalmente a possibilidade de ir embora da aldeia, onde até então não podiam sair. Ah sim, mais uma coisa, os rapazes pagam com um livro de Balzac, o médico que fez um aborto ilegal na mocinha.

 

A pequena costureirinha, belíssima, porém, sem nenhuma cultura, se transforma graças as histórias de Balzac contadas pelos dois amigos. Acontece que depois disso a protagonista toma consciência do seu valor e decide ir embora, viver a vida na cidade. Os rapazes, apaixonados pela menina mais bela da montanha, ficam decepcionados e queimam todos os livros.

 

O clássico é um verdadeiro hino ao poder libertador e transformador da literatura, pois a verdadeira literatura é universal e fala para todos. Uma costureirinha, moradora de uma montanha pode mudar a vida porque se identifica com as figuras femininas de Balzac.  Um exemplo é quando a costureirinha diz: ‘Balzac me fez compreender uma coisa: a beleza de uma mulher é um tesouro que não tem preço'”.  As diferenças de lugar e de época pouquíssimo contam se comparadas com elementos comuns.  Ao mesmo tempo, o romance celebra o poder de resistência que têm a literatura, a música e o cinema contra o totalitarismo e o obscurantismo.

A decisão da menina de deixar sua aldeia e ir morar na cidade para ter uma vida mais rica, mais interessante, mais independente fora dos sufocantes contextos sociais é algo comum ainda hoje também no Brasil. Milhões de jovens, e principalmente mulheres jovens buscam isso a cada ano. Como se fosse uma evidência, a única coisa para fazer. Mas vamos lembrar que um dos grandes problemas mundiais de hoje é a urbanização extrema, a fuga das pequenas localidades, do campo, das aldeias. Então o desejo de liberdade, tão compreensível, desta menininha, como de tantas outras e de tantos outros, contribuiu para uma catástrofe antropológica: a ruptura do equilíbrio entre cidade e campo. Quer dizer que a costureirinha deveria renunciar seu desejo de liberdade, sacrificar (inutilmente) a sua vida para o bem da humanidade?

Não!

O melhor seria se ela pudesse construir-se, inventar-se uma vida melhor onde ela está, ali, revolucionando a vida na aldeia. Não seria fácil. E só seria possível fazer coletivamente. Mas esta “revolução na revolução” da China é assunto para se fazer outro romance…

 

 

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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