Augusto dos Anjos: a empatia com o cadáver e a sombra da morte, por Pedro Henrique

O antecedente imediato da incipiente modernização republicana brasileira, entre o “café com leite” e os “cinquenta anos em cinco”, é a derrocada do Império, sua transição entre poderosos com bala de festim. A figuração poética “pré-modernista” mais emblemática a ser retomada desse período parece ser Augusto dos Anjos. Professor formado em Direito, Augusto dos Anjos migra para lecionar no Rio de Janeiro e morre de pneumonia aos trinta anos no interior mineiro. Para esse nordestino natural da Paraíba não é a seca, a fome, a opressão no semiárido, como no segundo momento modernista brasileiro no século XX, que se põe como a marca, a sina, o destino do homem, mas o cadáver, o verme, a morte, de modo ao mesmo tempo científico e alegórico.

Homem cujo engenho alegórico é quase todo ele constituído no que o ultrarromantismo tem de mais visceral – não a virgem sublime, mas o cadáver e o que há de baixo neste mundo –, ao mesmo tempo com um requinte formal parnasiano e um conteúdo recalcado tanto pela lírica, quanto pela vida social: a podridão, o cemitério, a sombra. Augusto dos Anjos consegue, como nenhum outro, conciliar rigor científico e agudas crises existenciais em um universo simbólico quase satânico; o que aparenta mera erudição é, ao contrário, retomado não pela crítica literária – Olavo Bilac, certa vez, ao ler um de seus poemas, disse não haver relevância naquilo –, mas pela prosa do dia a dia nos anos trinta do século XX, época das ruínas da economia capitalista após a crise de 1929.

Dois de seus poemas no seu único livro intitulado “Eu” são centrais: o Monólogo de uma sombra e o Poema negro. No primeiro, o poeta torna a sombra, a parente primeva da dor humana, sua musa; a cosmologia do baixo contida nesse poema parece configurar a sua constelação arcaica. Nela, alguns temas são cruciais: a) “A solidariedade subjetiva/ De todas as espécies sofredoras”; b) “A família alarmada dos remorsos./ É o despertar de um povo subterrâneo”; c) “Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,/ Abranda as rochas rígidas, torna água/ Todo o fogo telúrico profundo”. Trata-se de uma visão da existência marcada pela dor e pelo sofrimento, pela não realização do desejo, por sua impossibilidade de saciamento como a marca do destino na história do “homem”. Se a arte é o único caminho de lidar com essa fratura, se é o fenômeno estético, seja ele criativo ou contemplativo, um instante de duração incalculável capaz de retirar o “homem” de dentro de si mesmo, uma espécie positiva de alheamento de si, na qual interior (eu) e exterior (realidade) se reconhecem mutuamente, é algo que ficará aqui em aberto.

No segundo poema, não é a sombra quem fala, mas o próprio poeta; após uma série de de-lírios que vão do enfrentamento da morte à imagem do Cristo morto, o poeta desperta. Nesse percurso, outros temas são cruciais: a) “A passagem dos séculos me assombra […] parece-me um sonho a realidade”; b) “É a Morte – esta carnívora assanhada – […] Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!”; c) “Na podridão daquele embrulho hediondo/ Reconheço assombrado o meu Destino!”; d) “A Morte, em trajes pretos e amarelos/ Levanta contra mim grandes cutelos/ E as baionetas dos dragões antigos!”; e) “Chegou a tua vez, oh! Natureza!/ Eu desafio agora essa grandeza […] Tu não és minha mãe, velha nefasta!/ Com o teu chicote frio de madrasta/ Tu me açoitaste vinte e duas vezes…”; f) “Não! Jesus não morreu! Vive na serra/ Da Borborema, no ar de minha terra,/ Na molécula e no átomo”. A trilha desses versos deixa como rastro o duelo notívago, impossível de ser vencido, que o poeta trava contra a filha mais velha da natureza e do tempo: a morte. Ao final, derrotado, o poeta se pergunta: “Por ventura, meu Deus, estarei louco?!”; ao passo que conclui: “Daqui por diante não farei mais versos”. O fio de Ariadne capaz de guiar-nos no labirinto desse engenho alegórico poderia ser duplo: a visão decadente de alguém imerso nas categorias científicas, tornando perceptível o niilismo inerente ao desencanto científico do mundo; a luta contra o arcaico: o sofrimento e a morte como destino.

Essa morte, ponto culminante do destino de todo ser, poderia ser compreendida como algo além da morte física, como algo além da função barroca da caveira, portanto, de modo não apenas natural, mas histórico. A morte não é apenas aquela potência natural que está sempre a nos lembrar que, do soberano ao zé ninguém, o verme espreita os olhos para roê-los e há de deixar-nos apenas os cabelos na frialdade inorgânica da terra; a morte poderia ser compreendida como aquilo que Marx dizia das sociedades em que “o morto tolhe o vivo”, em que uma coisa morta, no caso da sociedade capitalista o dinheiro, torna-se viva, ao passo que nós nos tornamos coisas mortas, insensíveis. Poderíamos dizer, assim, como um dia nos disse Augusto, que ainda hoje nos sobe à boca uma ânsia análoga à que se escapa da boca de um cardíaco, sobretudo diante duma época profundissimamente hipocondríaca, gemendo o fim de sua última quimera, seu último fetiche apocalíptico: a valorização infernal do dinheiro. Ainda hoje podemos ver com assombro não a nossa sombra magra, mas a sombra larga do progresso como uma pele de rinoceronte estendida por toda a vida social, nesse cavalo de eletricidade, nesta terra miserável onde sentimos a inevitável necessidade de ser também fera. À sombra desse mundo errado murmuramos um protesto tímido e, no desespero dos iconoclastas, acabamos por quebrar a imagem dos nossos próprios sonhos. Mas virão outros.

Se se pode dizer, enfim, que a história de um “homem” se lhe inscreve no nome, por isso mesmo Deus teria rebatizado Abrão para Abraão, e assim também o fez Jesus a Simão, chamando-o de Cefas, Pedro, como logo depois sucede a providência com Saulo de Tarso, tornando-se Paulo, o apóstolo, o que se poderia dizer de um pálido, tísico, faquir Augusto dos Anjos? A pessoa é Augusta e ainda dos Anjos. Um homem que habitou em seu peito a sombra do mundo errado para, depois de morto, dizer-nos de além-túmulo mediante Chico Xavier: “Busquei a última visão das vistas foscas,/ O Derradeiro Número entre as moscas,/ À camada telúrica adstrito;/ E eu, vítima dútil da desgraça/ Vi que cada minuto que se passa/ É nova luz do Número Infinito”.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

Mais do autor

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

1 comentário