As pedras e os dentes, as pedras e os dentes, as pedras e os dentes. Ele caminha. Poderia ser uma mulher que buscasse no meio fio vestígios de plástico que pudesse acumular pensando em trocar por centavos. De grão em grão. Mas é um homem. E ele pensa que já desistiu. Pensa: poderia bater com muita força a cabeça contra o chão, as calçadas já rachadas. Deus. Mas ele apenas anda. Anda, anda. Não quer chegar. Não, nunca. Era melhor que o dia nunca mais amanhecesse. Que fosse possível só caminhar entre tantas folhas soltas, cheias de fuligem, enciclopédias destruídas, revistas, jornais insanamente antigos, pornografia, a fotografia heroica de mulheres nuas que é difícil dizer se ainda estão vivas. A maior solidão do mundo é a das mulheres nuas das revistas. Era muito adequado que a Bezerra de Menezes fosse uma avenida eterna. Era adequado também que houvesse mais abismos e carros com toca-fitas. Canetas, isqueiros, cigarros. Os débitos da vida. A vida. O que é? Uma pedra que se ponha na boca. Ou uma concha que se encontrasse na praia. Da Barra ou do Futuro? Por que existe uma praia no Ceará que é do futuro? Nunca lá se abriu nenhum portal. Eu gostava de só andar e de, andando, ser triste e, triste, eu gostava de andar. Tu lembra? A gente era jovem. A tia Carmen era até viva. O Mira y Lopes, que eu achava que eram duas pessoas, era um hospício aberto. Plutão era um planeta e a loucura inda era santa. Mas o que é que no passado ainda pode importar? Onde foi que o passado se escondeu? Tu percebeu? A gente nem era jovem mais não. A dor agora só dói e o corpo é velho. Velho. Todo mundo me chama de senhor. Senhor, senhor. Quero colocar na boca uma pedra. Assimilar os seus sais muito antigos. Será difícil no começo, mas o ser humano é muito feito de água e a saliva é quase toda disso. Queria ser um rio. Queria que ao menos houvesse em mim pequenos rios. Que o rio acorde e rume. Água. Águas latinas de um tempo ainda mais passada. O passado, o passado, o passado. Passar o som das letras pela boca enquanto as pequenas pedras jazem no vácuo de dentro das bochechas cheias, um monstro canino. Eu queria que as palavras arredondassem as pedras. Pedras sem arestas, sem pontas, quase feito quase adestrados quase cães. Quase água. Quase pedra. Quase dente. Quase passado. Abre bem a boca. Ajusta com a língua as pedras sobre os dentes. Com toda a força e toda a maldade do mundo. Fecha a boca.