Quem nasceu, cresceu e sobreviveu no lado de fora do muro que separa os muito bem “afortunados” de dinheiro, de sobrenomes, de puxa-saquismo e de conivência, têm outra visão sobre a Fortaleza do lado de dentro, onde as coisas acontecem à revelia dos sistemas e são plenamente absorvidas pelos sistemas.
Para a “Loura desposada do sol” os poetas não cansaram de render homenagem. E o que parece uma característica marcante, a rebeldia, esteve e está presente desde que Bárbara de Alencar resolveu se armar de bacamarte e transmitir sua genética revolucionária de uma forma diversa, mentalmente enriquecida pela literatura e pela história urdidas pelas mãos dos seus descendentes. José Martiniano, Tristão de Alencar, José Martiniano de Alencar, o filho do padre, que resolveu se insurgir contra o imperador e foi perseguido por críticos literários pagos regiamente pela coroa de Pedro II.
São atribuídos a Fortaleza tons de rebeldia por causa da Padaria Espiritual, da “Vaia ao Sol” na Praça do Ferreira, do Bode Ioiô, do Burra Preta, do Zé Tatá, do Grafite, do Mário Gomes… Mas quem lembra os nomes dos periféricos? Zé Limeira, torcedor símbolo do Ferroviário; Papagai na Areia Quente, esmoler na periferia da zona oeste; o vendedor de “figo gordo” sobre uma égua; o leiteiro, na burra, e tantos quantos foram os periféricos que faziam e fazem a resistência nas malocas do Pirambu, Barra do Ceará, Padre Andrade, KM 8, Alto do Bode, Siqueira… e adjacências, esses são os verdadeiros rebeldes.
E os jovens que sempre saltavam poças d’água para chegar aos pontos de ônibus lotados. Lutavam para conseguir pegar o “Clube de Regatas/Parangaba”, com capacidade para 42 pessoas, mas que levava o triplo; quem chegasse até a porta dianteira sem perder um botão da camisa, ficar suado, amarrotado e desgrenhado seria um verdadeiro herói de prova de obstáculos. Imagina esse povo alimentado, saudável e treinado para as olimpíadas!!!
Tem mais. A polícia era amigável com os da bolha de cima e maltratava com requintes de crueldade os periféricos. Alguns até saiam da zona de risco e entravam na bolha de cima, pois ela abrigava os artistas, os comunistas e os guias de festinhas que ocorriam na periferia, ao som da melhor música black, soul, forró e agarradinho, quando todo mundo que conseguisse um par se dava bem. O ruim é que se davam bem até certo ponto, porque os da bolha externa levavam as meninas e os rebelentos ficavam com os prazeres efêmeros daquelas festinhas. Depois rolavam cachaça, maconha e chutes em latas de lixo, toques em campainhas e corre-corre, quando aparecia um camburão no horizonte. É claro que havia gradações destas descrições, porque alguns tinham passe para a bolha e sabiam que a marginalia periférica vivia em outra bolha mais forte e mais pesada de se sair. Portanto, a circularidade da periferia não oferecia muitas opções para migração entre bolhas.
Os que se aventuravam no estudo e conseguiam furar as barreiras do sistema, logo percebiam que o outro mundo era legal, bacana e com infinitas possibilidades de crescimento. Legal, bacana, interessante são vocábulos que dizem apenas a metade do que se quer dizer. E na comunicação dos jovens, metade a ser dito já diz tudo.
Então, a universidade surgia como uma visão concreta depois do nevoeiro da ignorância. Tudo lá era legal, bacana e interessante, menos a comida do RU, incluindo o SNI, apelido daquele suco não identificado. É na universidade que nós aprendemos a nos posicionar politicamente. Os divergentes da Ralesofia ou da Pobraiada Ilustrada logo assumiam protagonismo nos diretórios acadêmicos e nos grupos artísticos, afinal, na arte de sobreviver e escapar os pobres são grandes sábios.
Fortaleza era um lugar onde os pobres podiam deitar na grama da Praia do Náutico e nas areias da Praia de Iracema para se misturarem com os praianos do alta e média sociedade decadentes. Na medida em que íamos nos ilustrando com filosofias, sociologismos e teorias, ficava mais claro o papel de cada um em seu lugar de fala. Neste grande caldeirão de raças, etnias e bolhas foi se formando, com o tempo, o não lugar de todos.
Os políticos profissionais entenderam o funcionamento da dominação. Algumas religiões patinaram no atraso de não abrigar as massas e outras foram cooptadas pelo que há de mais ordinário na política, a associação de Deus a esta canalha de poder econômico e de mandatos comprados.
Muitos da bolha periférica migraram para o não lugar de todos e atuam nos espaços onde é possível dialogar intelectualmente, sem o ranço do maniqueísmo esquerda/direita, ocupada por debilidades políticas extraordinárias.
Parece que estou fora da bolha. Incomoda-me estar dentro, estranho em ficar de fora. Muitos de nós, definitivamente, sobreviveremos no não lugar. Ora somos embolhados, ora debolhados. De uma ou outra forma, o sistema criará mais bolhas e nos dividirá em vapores, porque no fundo somos, irremediáveis mortais.
Respostas de 5
Ok, Gildemar. Vendo por esse ponto de vista, ele era revolucionário sim. Por nada.
Grato, Adriano!
Eduardo, depende do que você chama de revolucionário. O romance Iracema é esteticamente revolucionário. Estudo Alencar há muito tempo e não é um partido político no Brasil que define se ele é revolucionário ou conservador. Alencar teve compreensão da linguagem dialógica antes mesmo que Bahktin a expusesse. Só não elaborou o dialogismo porque não era esse seu propósito. Os puristas da Língua Portuguesa criticavam Alencar por quebrar o ritmo da frase e inserir tupinismos. Diziam que ele queria criar uma Língua Brasileira. E ele apontava inúmeras diferenças entre a língua falada em Portugal e no Brasil. Obrigado pela leitura e pelo comentário.
Muito bom!!
Só esclarecendo que o escritor José de Alencar se elegeu deputado por um partido conservador, ele não tinha nada de revolucionário, como sua avó, a Bárbara de Alencar.