A arquitetura é uma linguagem curiosa. Nem sempre considerada como artística, o senso comum em torno dela remete às possibilidades de uma boa vivência ou, como falam já há algum tempo: viver com qualidade de vida. Compreendendo que tal aspecto tem uma variedade grande de interpretações, pode-se perguntar se essa qualidade significa morar num lugar luxuoso, ou funcional, ou que seja de frente para o mar, ou silencioso, ou perto de hospitais, escolas, farmácias etc. Mas há ainda, em relação às delimitações dessa linguagem, outras questões. Do tipo: que situações de vida o termo abarca fazendo significar e, mais que isso, ressignificar a existência das pessoas?
O fato é: a arquitetura está presente em tudo. Ela nos delimita no entorno das gramáticas visual e espacial. Assim, como seres semoventes, precisamos estar atentos ao aspecto de que as coisas têm um determinado espaço e forma que permitem que transitemos e que atiçam nossos sentidos.
Além disso, há também a questão das cores. Elas estão aí, presentes no mundo, a excitar olhares os mais variados possíveis. Poder-se-ia dizer mesmo que os espaços que são construídos concretizam-se através das cores. Como assim? Assim: muitas vezes, nem percebemos as formas das coisas. Simplesmente elas existem e não nos incomodam. Só que, apostas nelas, situam-se a cor vermelha, ou então a amarela ou, quem sabe, a verde.
Nesse sentido, as cores significam. A partir daí, a parede passa a ter um toque especial: é a parede amarela em que está o quadro do casal, ou que possui a foto do cachorrinho inesquecível. O espaço emparedado, portanto, ganha vida, função social, função humana de ser vivenciado e de suscitar memórias. Assim, deixa de ser um mero espaçamento e passa a ter um papel acolhedor, de proteção, de amparo e de simpatia frente ao que ocorre dentro dele. Isso para não falar em questões eróticas e/ou existenciais. Afinal, entre quatro paredes tudo vale, até ser feliz!
Todo esse contexto citado comunica a possibilidade de se observar essa linguagem de uma forma humanizada. Literária já é! Por exemplo: no romance A Casa, da escritora cearense Natércia Campos, a edificação ganha vida, e, numa narrativa em 1ª pessoa, vai rememorando sentimentalmente, através de várias gerações, como foi construída, modificada, como serviu às pessoas que por ela passavam. Mas não só! O enredo destaca, fundamentalmente, os dramas humanos presentes em seus espaços.
Mas humanizar a arquitetura determina igualmente outros aspectos. Pode-se lembrar, por exemplo, do mestre Paulo Freire em suas primeiras andanças, denominadas por ele como “atividades perceptivas”. Assim é que, quando criança, ele ia descobrindo as coisas do mundo na casa em que nasceu – “que viravam carne”, como ele mesmo afirma no texto “A importância do ato de ler” – ao andar pelos quartos, bem como pelo corredor e o terraço e até mesmo subindo e caindo de árvores. No sentido freireano, pode-se compreender que as coisas, quando viram carne, apresentam novas possibilidades de serem tateadas, sentidas, vivenciadas e, quem sabe, eternizadas…
Pode-se lembrar também do francês Jean Paul Sartre! Ele, no texto As Palavras, comenta como elas mexiam com ele em banhos infantis regados a literatura e bálsamos. Era assim que sua mãe, Anne-Marie, enquanto o banhava, lia pra ele narrativas como As Fadas, as quais Sartre, mesmo após adulto, escritor e filósofo tido por muitos como fundamental no século XX, considerava inesquecíveis. Mas alguém poderia perguntar, e a arquitetura, onde cabe aí? Nas palavras, símbolos arquitetados em suportes variados – como num papel em branco ou numa tela de computador – significando tanto e muito…
Mas a arquitetura também passa por outros campos. Como o musical. Pensemos nos formatos de uma bateria, de uma guitarra, de um piano, de um saxofone, de uma gaita. Todos eles artísticos instrumentos ou, em outras palavras, artes de obras musicais! E que contêm conceitos de acústica, de física e de outras áreas quando foram arquitetados para produzirem sons considerados, muitas vezes, maviosos. Além disso, quando acionados por pernas, mãos e bocas trabalham numa carpintaria que envolve arranjos, arquiteturas moldadoras de estilos musicais – falamos aqui, portanto, de uma gramática sonora!
Em termos religiosos, por sua vez, há citações sobre o grande arquiteto do universo. A pluralidade que tal citação encerra abre questões para a confecção dos mundos. Além disso, cantada por gênios como o baiano Raul Seixas, é retomada como metáfora do Criador, harmonizada em torno de uma partícula divina – o mito da origem! – fazendo-se “vida”, cosmologia poética a buscar dimensões múltiplas!
Além de Raul, existe “The Wall”, título arquitetônico que define o clássico álbum da banda britânica Pink Floyd. Ideia matriz que aparece na cabeça de Roger Waters durante um show no qual estava insatisfeito, em terras canadenses, “a parede” nesse caso surge como metáfora da solidão, do distanciamento e da vontade de ausência. No trabalho específico, lançado em dezembro de 1979, Waters pensa a música – e o mundo no qual ela circula – em outros termos: com menos pressão de se fazer sucesso, e com menos opressão capitalista de se ganhar dinheiro. Assim, ele gritava ao mundo que a arte não devia aprisionar ninguém, mas ser um elo político de liberdade humana!
Lembro que conheci essa pérola floydiana em janeiro de 1980 na casa de uns amigos, em Porto Alegre. O disco, recém-lançado, era uma edição alemã (época pré-internet, portanto…), e eu, um garoto de 15 anos, fiquei impressionado com toda aquela temática! Sons de helicóptero, de avião, telefones tocando, canções com pitadas de rock, blues, funk, progressivo, as letras questionando uma educação dominadora, distante, arranjos complexos sugerindo dramas humanos, e uma capa intrigante demais… Que parede era aquela? Que significados artísticos poderia ter? Muitos…
Arquitetura lembra também, em outro caso particular de memória, a construção de Brasília. Nascido em junho de 1964, num período conturbado da vida brasileira, ainda criança compreendi a importância de Juscelino, o cara dos 50 anos em 05, o cara que respondeu, soube décadas depois, a uma jornalista que questionava a construção – considerada por ela “absurda” – da capital do país num deserto. E ele: “minha filha, absurdo é o deserto…”.
Desde criança a percepção sobre Brasília – apreendida em conversas familiares, na escola e também na grande mídia – envolvia-me num olhar moderno, de ponte para o futuro. Tempos após, já adolescente, o sonho também acabou para mim, não só para Lennon: descobri que o regime neste país era de exceção, com matança de pessoas e negação de cidadania a brasileiros tão especiais como o próprio Freire, além do sociólogo Betinho, Miguel Arraes e Brizola. Tempos sombrios aqueles! Aqueles?
De qualquer forma, nos anos de 1980 estive em Brasília. Fiquei impressionado com o que vi! Edificações diferentes, uma imponência a partir das grandes vias de trânsito, multiplicidade de pessoas engravatadas. E no meio disso tudo, eu e uma turma ouvindo rock´n´roll e tomando vinho nas sacadas de prédios na Asa Sul. Por lá, em minhas andanças, eu admirei um pôr do sol belíssimo e inesquecível, só comparado com o de Jericoacoara, quando estive nessa praia tocando com a banda bluseira Gang da Cidade e cheguei pelo litoral num final de tarde. O resultado? Cerveja, violão, B.B. King, Clapton, Luís Carlos Porto – d´O Peso, a maresia, aqueles morros maravilhosos e o sol se pondo em cima da gente, trazendo o claro escuro da noite…
Por todas essas experiências e percepções, pode-se dizer que a arquitetura esteja em tudo. Desde o voo de um pássaro à confecção de uma canção, passando pela concretude de um prédio. E toda essa conjuntura talvez nos faça mais humanos, pessoas que necessitam de olhos nas almas para enxergar melhor, enxergar além dos muros, ultrapassando-os em nossos voos pessoais para ver e sentir a arquitetura da vida. Para ver e sentir a beleza da vida.
Carlinhos Perdigão
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OBS.: texto dedicado aos queridos primos Aristófanes Júnior e Célia Perdigão. Essa turma querida é responsável pelas primeiras reflexões que tive sobre a linguagem da arquitetura. Aos dois a minha mais profunda homenagem – a ele pelo carinho, amizade e forte parceria enquanto esteve vivo. Júnior foi meu companheiro de estudos, de viagens, de sonhos, de músicas, grande amigo, grande irmão, era um ativista em torno da ideia de justiça social. Célia, por sua vez, representa o trabalho arquitetônico em duas vertentes que admiro bastante, como autora de livro infantil, e como funcionária por décadas do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.