De uns dois anos pra cá, temos sido impactados com muitas perdas no meio artístico. Nunca é fácil escrever sobre perder alguém, sobre uma despedida, sobre nunca mais ver, ouvir ou sentir a arte daquele que tanto te inspirou de alguma forma em vida. No último dia 8 de junho, calou-se repentina e espantosamente a voz de Andre Matos, ex-vocalista de bandas importantes na cena do rock e heavy metal brasileiro como Angra, Viper e Shaman.
Andre se foi aos 47 anos vítima de um ataque cardíaco fulminante, pegando de surpresa todo um séquito de fãs que, incrédulos, ainda aguardavam uma especulada reunião clássica com o Angra para comemorar os 30 anos da banda. O cantor havia participado de um show no dia 2 com o Avantasia (supergrupo de power metal que conta com diversos convidados a nível mundial) em São Paulo, abrindo com sua antiga banda, Shaman, em turnê de celebração e reencontro.
Lembro muito de um dos diálogos finais do excelente filme O Último Samurai (2003) que podem explicitar o sentimento de saudade da melhor forma possível. No final do filme, ao ser recebido no palácio imperial após a fatídica batalha dos samurais contra o exército japonês, o Imperador e o general Nathan Algren (Tom Cruise) travam o seguinte diálogo sobre a morte de Katsumoto, o último samurai (interpretado pelo excelente Ken Watanabe): “-Conte-me como ele morreu. | -Contarei como ele viveu.”
Mesmo ainda triste e um tanto incrédulo, quero tentar contar a partir de uma ótica mais saudosa e honrosa para falar do Andre, inclusive de como e quando tive o prazer de conhecê-lo e das três outras vezes que tive a satisfação de vê-lo cantar ao vivo. Antes disso, é preciso explicar um pouco sobre quem ele era.
Andre Coelho Matos destacou-se a partir dos 15 anos de idade ao começar a cantar na banda Viper com seus amigos do colégio. Entre essa formação original, estava Yves Passarel (hoje conhecido nacionalmente por ser o guitarrista do Capital Inicial). A banda fazia um heavy metal tradicional com muita influência do Iron Maiden. Tanto que, anos depois, Andre foi inclusive bastante cotado para ser o novo vocalista da banda britânica após a saída de Bruce Dickinson. Apesar de sua paixão pelo rock e metal, Andre também era fascinado pelos compositores eruditos e Música Clássica, o que inclusive fez com que o “maestro” (como era carinhosamente chamado pelos fãs) já brincasse com essa mistura durante sua permanência na banda, principalmente no excelente álbum Theatre of Fate (1989). Mas essa paixão foi também o que o motivou a deixar o Viper ainda em 1990 e ir estudar Música na Faculdade de Artes Santa Marcelina. Formou-se maestro, compositor e pianista clássico – o que viria a se tornar um diferencial mais do que marcante para sua carreira dali pra frente.
Ainda na faculdade, iniciou uma amizade que definiria para sempre sua vida artística: conheceu Rafael Bittencourt e, reunidos e apoiados por Antonio Pirani (antigo empresário do Viper e dono da influente revista Rock Brigade), começaram um projeto ousado que misturaria justamente o peso das guitarras e a bateria acelerada aos elementos da música clássica, além de inserir elementos da música brasileira. O nome da banda era Angra, e foi com o sucesso dela que Andre se projetou no Brasil e no exterior.
Quase 10 anos de carreira com o Angra renderam uma rica discografia que começou com a fita demo Reaching Horizons (1992), e despontou a nível mundial com o primeiro álbum da banda, o aclamado Angels Cry (de 1993), que já chamava atenção e se diferenciava justamente pela mistura mais do que certa entre guitarras, baterias velozes, vocais agudos com as orquestrações e violinos da música clássica. Após ser muito bem recebido e render algumas extensas turnês (no Brasil e no mundo), a banda lança o sucessor Holy Land em 1996, dessa vez trazendo diversos elementos rítmicos e melódicos da música folclórica brasileira. O tema do álbum fala do período das grandes navegações e do descobrimento do Brasil, sendo até hoje um dos mais adorados pelos fãs.
Este álbum rendeu ainda mais dois mini-lançamentos: o EP Freedom Call e o ao vivo Holy Live, gravado na França. Em 1998, a banda lança seu último álbum com Andre: Fireworks já toma um novo direcionamento, jogando-se de cabeça num heavy metal mais cru, rápido e furioso. Era um retrato do momento da banda à época, com as relações desgastadas com o então empresário Antonio Pirani e também entre os próprios membros. As baladas Gentle Change e Rainy Nights (lançada à parte como single e também apenas na versão japonesa do álbum) parecem já cantar o tom de despedida da banda, em versos como “Gentle change of tides/Upcoming days/The spirits of a new horizon fall/Into old dreams” (“Mudança gentil das ondas/Dias que virão/Espíritos de um novo horizonte repousam/Em sonhos antigos”) ou “So understand, my friend/Sometimes there’s rain, sometimes there’s breeze/Fanning the fire, and so” (“Então entenda, meu amigo/Algumas vezes há chuva, outras brisa/Atiçando o fogo, e mais”).
Matos e outros dois membros (o baixista Luis Mariutti e o baterista Ricardo Confessori) deixam o Angra em 2000 e dois anos depois fundam a banda Shaman, que logo se tornou sucesso e meio que dividia os fãs da época – lembro de na minha época de adolescente cunharem o termo ShamAngra para até mostrar a proximidade entre as bandas “rivais”. O Shaman logo se tornou sucesso no Brasil e também no exterior, e Andre parecia muito mais à vontade com esse novo momento. A banda contava com mais elementos eruditos, étnicos e também com temáticas indígenas, sobretudo no primeiro disco (Ritual, de 2002) onde piano de Matos era bastante presente e havia, por exemplo, melodias com flautas peruanas e temáticas da cultura sul-americana. Com o Shaman, Andre lançou também Reason (de 2005) antes da banda se dissolver em 2006. Ao seguir em carreira solo, lançou os excelentes Time To Be Free (em 2007), Mentalize (2009) e The Turn Of The Lights (2012).
Nessa rica e extensa carreira, Andre ainda conseguiu participar de projetos marcantes como Symfonia (com Timo Tolkki, ex-guitarrista da banda de power metal finlandesa Stratovarius), gravar mais participações com o Avantasia e também reunir-se novamente com o Viper, após mais de 20 anos. Seu talento para composição e seus agudos marcantes (e totalmente naturais, pois não eram cantados em falsete) o faziam sempre requisitado e presente no meio musical. Tive a felicidade de vê-lo ao vivo tanto na época do Shaman, em meados de 2002/2003 durante o festival Ceará Music quanto na reunião com o Viper em 2012 em um show memorável numa barraca de praia (!?) aqui em Fortaleza. Em abril de 2016, o vejo pela última vez ao vivo num fantástico show na Praça Verde do Dragão do Mar onde Andre cantou como nunca e passeou praticamente pelos maiores clássicos de todas as suas bandas.
Alguns anos antes deste (para mim, último) show, tive a felicidade de trombar com Andre muito por acaso, porém num momento bastante oportuno. Foi em 2010, e eu ainda estudante na faculdade. Véspera do meu aniversário. Soube de última hora que ele ia se apresentar numa livraria aqui em Fortaleza e, para minha segunda surpresa, com um projeto de Blues. Era a oportunidade perfeita também pra tentar pegar um depoimento pra um documentário que valia nota pra um trabalho na faculdade, e o tema era justamente saber – de pessoas do meio – o que era o significado da música para elas. Ele me recebeu muito bem, gentil e atencioso depois do show. Quando liguei a câmera pra filmar, ele disse que a minha pergunta parecia “bem vaga” e era difícil responder assim de pronto. Gelei. Mas ele continuou, se interessou pelo tema e até foi se levantando pra falar. Deu uma curta aula sobre arte e inspiração, falando sobre o quão importante é a gente se inspirar e beber culturalmente de diversas fontes para que a criação nasça com mais naturalidade e beleza.
Agradeci demais e ainda registrei o momento com o cara que escreveu “Carry On”, “Time”, Silence and Distance”, “Lisbon” e tantos outros clássicos do Angra que ouço até hoje. E ainda nos deu coisas geniais como os álbuns do Shaman, da carreira solo e suas brilhantes participações em tantos projetos pelo mundo. Tive sorte de vê-lo 4 vezes ao vivo, com o Viper, Shaman, no projeto de Blues e em carreira solo.
Seu legado é tão grande e celebrado que fãs ao redor do Brasil estão organizando uma petição online para transformar o dia 8 de junho no Dia do Heavy Metal no calendário nacional. Mesmo com tantas homenagens e lembranças, a gente ainda não acredita que ele se foi, mas somos eternamente gratos pela arte que ele entregou ao mundo. Pena não poder ainda sonhar em vê-lo de novo no Angra, mas muito obrigado por tudo, Maestro. Fica em paz e Carry On.