Autor de contos, crônicas e ensaios, o professor e escritor Alder Teixeira faz sua estreia como romancista. O que poderia ser mais um livro de ficção, de tantos que chegam a público mesmo neste período de pandemia, no entanto, vem despertando notável interesse entre os primeiros leitores de Quase Romance (este é o título da obra), mesmo aqueles ditos ‘do ramo’, a exemplo do poeta, crítico de literatura e pesquisador Dimas Macedo, para quem “Alder escreveu um livro para a política, a eterna ilusão do amor e a estética da literatura, na plenitude do seu vigor de intelectual e escritor”. Já o contista, romancista e editor Clauder Arcanjo, diz tratar-se de um livro com vocação para clássico, pela estrutura narrativa ousada e densidade na elaboração do conflito central do romance. A coordenação de Cultura do jornal Segunda Opinião conversou por telefone com o autor. Confira a seguir:
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“A história ‘conversa’ com o clássico de Machado de Assis, cita-o, explora o tema do ciúme, e lembra a forma como o Dom Casmurro está articulado enquanto narrativa.”
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SO – São elogiosas as primeiras impressões sobre Quase Romance, sua estreia na narrativa longa. Por que só agora decidiu escrever um romance?
ALDER – Costuma-se dizer que o conto é a mais difícil das formas narrativas. Essa não é, contudo, uma conclusão de todo procedente. O romance, dada a sua estrutura, em que pontuam a ocorrência de múltiplos conflitos, a diversidade de espaços e o número mais amplo de personagens, sem esquecer a complexidade do problema do narrador, para falar dos seus componentes mais importantes, exige do escritor um aguçado senso de organização discursiva. A escolha do foco narrativo e da continuidade da ação, por exemplo, pedem atenção, cuidado, esmero narrativo, sob pena de a história perder o seu eixo dramático e resultar num amontoado de cenas que nada dizem do núcleo central do romance. Mas como escrever é um desafio, além de uma experiência extremamente prazerosa, ousei produzir um romance no conjunto das coisas que fiz em termos literários durante a pandemia. Consciente, quero evidenciar, de suas fragilidades em termos do que defino como poética do romance.
SO – O romance está ambientado no Rio de Janeiro no auge da ditadura militar. Por quê?
ALDER – O Rio é uma cidade que sempre me disse muito. Conheço-o relativamente bem, e não tenho dúvida que é a cidade mais brasileira sob muitos aspectos. Num momento em que se vê o país retroceder em termos sociais, políticos e culturais, com pessoas festejando isso e pedindo a volta dos militares, do AI-5 etc., considero importante que os artistas tentem encontrar caminhos para levar essas pessoas a entender o que foi a ditadura militar e esse instrumento de cerceamento brutal que foi o AI-5, notadamente os mais jovens, que parecem desconhecer os horrores de um regime de arbítrio. O Rio foi o epicentro das lutas pela redemocratização do país, a nossa Paris de 68. O romance nasceu de minha indignação contra essa realidade doentia que se estabeleceu entre nós desde a eleição de Jair Bolsonaro para presidente, e do amor à arte.
SO – O que existe nele sobre outras questões, mais existenciais, digamos?
ALDER – Toda obra de ficção permite diferentes planos de leitura. Haverá quem atente, apenas, para o conflito de relacionamento entre as personagens centrais, Paulo e Ana, para o ciúme dele em relação à mulher, o que, desculpe-me o spoiler, leva à falência do casamento. Outro plano é perceber em que ambiente e em que atmosfera política isso se dá, o que era o país durante os anos de chumbo, o que houve de perseguições, tortura, mortes, horror. Não bastasse o que para mim é fundamental nessa perspectiva: Paulo representa aqueles ex-esquerdistas que venderam (e vendem) sua alma ao diabo, que negam suas convicções em favor de interesses pessoais mesquinhos e inconfessáveis. Porção significativa da classe média brasileira é composta dessa gente, que pensa pertencer a outro estrato social, que pensa poder participar de sua farra e tirar dessa realidade proveito pessoal. Uns tolos, matadores de si mesmos, servis a seus inimigos, admiradores de seus próprios algozes! Paulo é esse tipo, e, em grande parte, isso explica o seu fracasso. A carta que Ana lhe escreve, de Portugal, é o tapa na cara que merece. Ali estão as verdades que precisam ser ditas àqueles que, como ele, traem seu ideal, e se colocam desavergonhadamente no campo do seu explorador.
SO – E Ana? É uma personagem com bom nível de complexidade, não?
ALDER – Perfeito. Nela, coloquei a valentia dos que sonham com um país melhor. Mas sem idealizá-la: Ana tem seus momentos de instabilidade, seus conflitos, seus sofrimentos, suas dores, suas contradições. Mas não tergiversa, não abre mão de seus princípios e é capaz de romper com aqueles que o fazem. Isso a humaniza, sem tirar no entanto o brilho do seu ideal e de suas convicções políticas e passionais. As questões femininas estão nela, políticas, sexuais, amorosas, intelectuais… Sua carta ao ex-marido, reitero, é emblemática nesse sentido.
SO – No que diz respeito à narração, o livro é polifônico, isto é, as diferentes personagens têm voz, expressam seus pontos de vista. Isso não poderá dificultar o entendimento da história?
ALDER – Sim, o foco narrativo varia sempre que uma ou outra personagem assume posição de relevo no conflito, para não falar da presença de um narrador em terceira pessoa que surge, não raro, dentro do discurso da própria personagem. Essa mudança de ponto de vista pode confundir em princípio, mas o leitor logo descobrirá como o romance está estruturado sob este aspecto. Mas há invariavelmente um elemento de linguagem a funcionar como sinalização, uma situação da tessitura dramática, uma referência ao interlocutor, um detalhe que destaca quem fala, quem enxerga os acontecimentos assim ou assado. Não é um recurso tão incomum. Livros como As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, Memorial de Maria Moura, de Raquel de Queiroz e Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, se me permite falar de uma literatura maior, de outra dimensão, claro, apresentam essa organização narrativa.
SO – Paulo escreve dentro do livro um outro livro…
ALDER – Mais que um livro dentro do livro, perdoe-me. Paulo escreve o próprio livro de que é figura central. Há um movimento para o abismo, como os franceses definem a obra de arte que ecoa a si mesma, que se retorce dentro de suas próprias entranhas. Nesse sentido, é mais adequado falar-se de reflexividade. A cena final do romance é a mesma do início, o que evidencia a circularidade da narrativa, em flashback. Mas não se trata de memorialismo. As memórias são da personagem, não do autor do romance. E, como está claro, expressam o olhar daqueles que participaram diretamente da história vivida.
SO – Alguma influência do cinema?
ALDER – Inequivocamente. O romance obedece a um tipo de montagem que é próprio da técnica do cinema. Há cortes bruscos, à maneira de Godard (risos), idas e vindas, rupturas de tempo e espaço… situações em que se percebe algo como o fade out cinematográfico.
SO – De volta ao conteúdo: Não tem elementos autobiográficos, então?
ALDER – Toda obra de arte tem algo do seu autor. Mas isso não é razão para que se veja nela, a obra, aspectos autorreferenciais, em que pese, como é o caso, a existência de elementos convergentes entre a personagem e o escritor. Nada de projeção, de transposição autobiográfica. Dê-se a isso o nome que se quiser, metaficção, metaliteratura ou coisa que o valha. O que importa é a sua substância estética. É o conflito humano, a natureza humana, a angústia humana…
SO – Na segunda capa, digamos assim, os editores dizem estar o romance plasmado no Dom Casmurro. Explique isso.
ALDER – A história ‘conversa’ com o clássico de Machado de Assis, cita-o, explora o tema do ciúme, e lembra a forma como o Dom Casmurro está articulado enquanto narrativa. Mas é, ao lado disso, a declaração de amor à grande literatura, não de um escritor na acepção rigorosa do termo, o que soaria pretensioso, mas de um leitor contumaz. O livro de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, por exemplo, é revisitado ao longo do romance.
SO – Por último, que interpretação deseja para o seu livro?
ALDER – Recorro a Umberto Eco, quando diz que há, entre a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor, a intenção do texto. Sem incorrer em estruturalismos de ordem analítica, espero que o texto se diga por si mesmo. Mas é literatura, é ficção, é mentira que se pretende verdade, como afirma Mário Vargas Llosa em livro magnífico. Mas, por óbvio, lançado, o livro deixa de pertencer ao autor. Que este julgue-o como lhe convier.
Respostas de 2
Maravilha, poeta Clauder Arcanjo!
Tive a honra, como editor, de ler os originais de Quase romance, e reitero: “É uma obra que nasce clássica.”.