Ainda sobre F. M. Dostoiévski

Quando, semana passada, escrevi sobre os duzentos anos de Fiódor M. Dostoiévski, confesso não esperar que a coluna tivesse a repercussão que teve. O fato de receber tantas mensagens, por e-mail e WhatsApp, constituiu motivo de entusiasmo pessoal, confesso, menos pelo fato de que os comentários em sua totalidade constituam um tipo de aplauso para este colunista, coisa de que, é natural, se abastece o ego de quem escreve, aqui ou em Londres.

Impressionou-me, sobretudo, o interesse que o escritor russo tem despertado cada vez mais junto aos leitores brasileiros, de certo conquistados pelas traduções que se têm feito direto do original nos últimos anos. Ponto para a editora 34, e, claro, para tradutores da estatura de Boris Schnaiderman, Tatiana Belinky e, mais recentemente, Paulo Bezerra, Fátima Bianchi e Irineu Franco Perpétuo. Uma beleza.

Duas dessas mensagens faço questão de destacar aqui: a primeira questiona em que livro de Dostoiévski aparece a expressão “A beleza salvará o mundo”, a que, diz o leitor, tantas vezes tenho feito alusão ao longo dos anos. A segunda, mais assertiva, questiona que se possa, a exemplo do que fiz, considerar-se o autor de Crime e Castigo um crítico do capitalismo. Vamos por parte.

Começo por dizer que a beleza é assunto recorrente na obra do escritor russo, mas é nos romances O Idiota e Os Irmãos Karamazov, particularmente, que a expressão atravessa a narrativa com insistência.

No primeiro, a expressão usada pelo príncipe Míchkin é repetida recorrentes vezes. No segundo, embora a expressão não seja rigorosamente essa, o tema da beleza vai ser aprofundado, ecoando, numa reconhecida projeção do autor, suas ideias sobre o mistério da iniquidade numa perspectiva cristã.

Essa preocupação filosófica com a beleza, no entanto, é esteio em que se sustenta quase toda a obra do autor. Sob este aspecto, uma fala da personagem Arkádi, em O Adolescente, um dos cinco grandes romances da maturidade, é emblemático: “… O senhor empregou mais uma vez a palavra ‘beleza’ e justamente ontem e todos estes dias tem-me essa palavra atormentado…”, diz ele, dirigindo-se a Makar Ivanovitch.

Quanto a vislumbrar crítica de Dostoiévski ao modelo econômico capitalista, questão de fato mais complexa, não é sem razão que se pode considerar possível tal leitura mesmo no romance Crime e Castigo, a que me referi por este viés na coluna da semana passada. Considerando-se as limitações de espaço (o tema exigiria páginas de argumentação!), valho-me de uma fala de Raskólnikov para suscitar no leitor um bom motivo de reflexão sobre o que afirmei: “Crime? Que crime?… O fato de eu ter matado um piolho nojento, nocivo, uma velhota usurária, que não faz falta a ninguém? Tem cem anos de perdão aquele que mata quem sugava a seiva dos pobres; isso lá é crime? Não penso nele, e nem sequer penso em apagá-lo”.

Mas, se ainda assim persistirem dúvidas, é caso mais explícito o romance O Jogador, de 1866, publicado portanto no mesmo ano que Crime e Castigo, em que, na linha do que Joseph Frank, em biografia incontornável do escritor russo,  diz ser um exemplo clássico de sua pegada de cunho antropológico, sociológico e econômico, salta aos olhos uma certeira e irrecusável crítica ao poder do dinheiro, do ganho fácil, das perdas devastadoras e outras mazelas do capitalismo.

Há cento e quarenta anos de sua morte, ocorrida em 1881, ao lado de construir uma obra monumental sobre a condição humana, suas contradições, seus medos, seu egoísmo, seus pecados e sua irrefreável e sempre frustrada busca da salvação, Dostoiévski parece reportar-se aos tempos atuais. Nesse sentido, a História mais ainda lhe acrescentou.

Ao desfechar esta coluna, ocorrem-me as palavras de uma personagem do romance Humilhados e Ofendidos, cujo título não deveria passar despercebido: “O mais obscuro dos homens é sempre um homem e leva o nome de irmão”.

Proferidas por um humilde servidor público, o herói do romance, essas palavras são bastante para revelar o profundo sentimento de companheirismo de Dostoiévski para com aqueles a quem a sociedade explora, como a levá-lo, perversamente, aos limites da condição humana.

É ler um dos maiores escritores de todos os tempos, por ocasião dos duzentos anos desde o seu nascimento, e tirar o leitor suas conclusões.

 

Imagem domínio público

Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica

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Alder Teixeira

Professor titular aposentado da UECE e do IFCE nas disciplinas de História da Arte, Estética do Cinema, Comunicação e Linguagem nas Artes Visuais, Teoria da Literatura e Análise do Texto Dramático. Especialista em Literatura Brasileira, Mestre em Letras e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, dos livros Do Amor e Outros Poemas, Do Amor e Outras Crônicas, Componentes Dramáticos da Poética de Carlos Drummond de Andrade, A Hora do Lobo: Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman e Guia da Prosa de Ficção Brasileira. Escreve crônicas e artigos de crítica cinematográfica