ADEUS À SOLIDÃO, por Íris Cavalcante

Há algo de religioso na solidão. O ofício da escrita convoca esse estado de alma que encontramos quando estamos sozinhos, que pode nos trazer a paz ou reeditar nossos demônios. Há o momento de ser silêncio e de ser multidão.

Quem me conhece, sabe da minha paixão e admiração por Hemingway, por seu estilo textual conciso, que se articula com a minha escrita em busca contínua de identidade. Ele dizia que “mesmo quando estava entre a multidão, estava sempre sozinho.” Reverberam ecos dessa reflexão em muitas passagens de sua obra, como se ele travasse uma luta descomunal, contra algo que o subjugava.

Em “O velho e o mar” o cenário é de solidão extrema, personificada pelo velho pescador em alto mar, sob um sol cegante e noites tempestuosas. Após dias sem pescar nada, o velho encontra o peixe que tanto buscava. Eles se olham. Há um respeito e um quase diálogo, antes de iniciar-se a luta do pescador para abater sua presa. O pescador é um velho e o peixe, um gigante; uma visível desigualdade de forças. Hemingway narra esse duelo como se fosse o Odisseu no regresso da guerra, ou como a luta de um homem por sua redenção.

Algumas vezes, a solidão se nos apresenta como algo limitante, que nos cria insuficiências, na mesma proporção em que nos faz encontrar a sobrevida. Poucas coisas eu considero tão incapacitantes quanto o sentimento de estar só junto a alguém, ou em meio à multidão. O avesso disso é sentir-se acompanhada da própria companhia. Um estágio que somente atingimos após muitas vivências, dores e perdas; quando se dá o reencontro de alguém que foi despedaçado com sua versão reconstruída.

O velho solitário que duela com o peixe e com o mar é espelho para nossas lutas individuais ou coletivas. Eu me reconheço no velho, eu me reconheço na infinitude de sua solidão. A minha luta se reconhece na luta contra tudo o que nos paralisa, sejam os medos, as forças estranhas, os ódios coloniais, os ressentimentos de qualquer natureza ou a solidão num planeta de mais de sete bilhões.

Conhecer um pouco de Hemingway, sua obra e sua história, é reconhecê-lo um resistente. Resistiu o velho e resistiu o peixe, até tornar-se o peixe sua carcaça; até tornar-se o homem a superação que lhe foi possível.

Há fortes imagens de resistência em toda a narrativa de Hemingway, que dialogam com a leitura que cada leitor faz do texto. Mas ele mesmo declarou, a despeito de qualquer interpretação: “O mar é o mar. O velho é um velho. Todo o simbolismo do qual as pessoas falam é besteira”. Pela minha perspectiva, creio eu que aqui sagra-se o momento solene em que a obra sobrepõe-se ao autor e trilha o seu próprio caminho. Obra que lhe rendeu um Pulitzer. Depois veio um Nobel. Mais uma vez, a imagem da redenção de um homem. Alguns o julgavam no fim.

O texto contundente e os diálogos pragmáticos de Hemingway foram e continuam sendo companhia para os meus silêncios. Das inúmeras lutas contra os meus fantasmas, ganhei libertação e fôlego para dividir minha força com quem precisa. Hemingway estava presente em muitos desses momentos. Ele tumultuou a minha solidão com tensões de guerra, trincheiras, passeios em Paris ou Milão, adeus às armas, sol que se levanta e derrete a neve do Kilimanjaro, sinos que se dobram. Quem dera eu pudesse retribuir-lhe a companhia na inevitabilidade de sua angústia, na guerra interna que se movimentou dentro dele, enquanto era atravessado pelo sofrimento. Sim, isso é algo inconcebível na escala do real, mas perfeitamente possível no ambiente sagrado e mágico da literatura, ou quando nos curvamos ao amor. Alguém pode me dizer: Ah, mas você é uma simples leitora de um tempo que nem é o dele. E eu respondo: Não importa de onde se estenda o gesto em direção ao outro, se pode salvá-lo do caos… Isso é atemporal.
– Francamente, Hem, você é um gigante, tal como o peixe, o mar ou a sua solidão tornada infinita! Há, sim, um definitivo pacto de afetos entre nós: essa leitora simples e seu escritor favorito. Quantas vezes você alcançou os meus abismos, mas nossas épocas não permitiram a reciprocidade. Quem sabe ainda nos encontraremos em algum lugar, no além de qualquer tempo ou sofrimento, tomaremos um mojito e falaremos sobre gatos e livros. Se em Cuba ou em África, não sei, cada uma tem sua importância no imaginário coletivo. Mas que importa o lugar, meu querido Hem, se os sinos dobram por ti?

Tua admiradora de sempre,
Íris.

Fortaleza, um dia de maio do século XXI.

Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.

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Iris Cavalcante

Íris Cavalcante é especialista em Escrita Literária e MBA em Administração Estratégica. Estreou na literatura em 2003, teve publicações como autora independente, participação em coletâneas e revistas eletrônicas. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesias com o Vento do 8º andar.

1 comentário

  1. Jaime Soares

    Há algo de sublime nesta crónica.
    Eu já li esta crónica mais de 10 vezes. Só para avisar. :D
    Só dá para imaginar o seu Hemingway a beber à tua saúde e à tua escrita.

    Parabéns pela beleza nessas palavras.