Com a encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, promulgada em 15 de maio de 1891, a Igreja Católica inaugurou a produção de uma série de documentos pontifícios voltados para a questão social, do conflito entre capital e trabalho.
A Rerum Novarum foi uma resposta da Igreja Católica ao fortalecimento do capitalismo monopolista na Europa, a qual buscou analisar a precária situação do proletariado industrial que padecia pela a afluência da riqueza nas mãos de um pequeno número de industriais ao lado da indigência de uma multidão de trabalhadores. Para o pontífice, seria preciso reverter essa situação de opulência causada pelo monopólio dos meios de produção e do monopólio dos papéis de crédito, “que se tornaram o quinhão de um pequeno número de ricos e de opulentos que impõem um jugo quase servil à imensa multidão de proletários”. Como contrapartida ao avanço do capitalismo, o documento propunha a criação do cooperativismo, por meio da união e organização dos trabalhadores em cooperativas de produção e de crédito. E do ponto de vista político, a encíclica asseverava que “o Governo é para os governados e não vice-versa”. A razão de ser de um Estado é justamente o de proteger a comunidade, é a lei suprema e a sua razão de ser. Ou seja, era preciso as pessoas agirem politicamente para fazer com que o Estado cumprisse o seu papel garantidor dos direitos dos humanos.
Seguindo nesta linha, na comemoração do 90º. Aniversário da Rerum Novarum, o Papa João Paulo II publicou sua famosa carta Laborem Exercens cuja centralidade de reflexão pousa sobre o trabalho humano. Uma das características que distinguem os humanos do restante das criaturas da natureza é o trabalho: somente os humanos têm a capacidade para o trabalho e o realizam preenchendo ao mesmo tempo suas existências temporais. Assim, afirma João Paulo II, o trabalho comporta em si uma marca particular humana, a marca de uma pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e tal marca determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui sua própria natureza.
Em seguida, o documento aprofunda sua reflexão ao conceber o trabalho humano como uma “chave essencial” de toda a questão social. E a solução da questão social deve ser buscada no sentido de tornar a vida humana mais humana. Então, por isso mesmo a chave, que é o trabalho humano, assume uma importância fundamental e decisiva. É como pessoa que o ser humano é sujeito do trabalho. A consequência ética desta constatação implica que todas as formulações importantes sobre os problemas sociais deve ter sempre presente como medula fundamental essa verdade. Isto quer dizer que o primeiro fundamento do valor do trabalho é o ser humano, o seu sujeito, ou seja, o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. Diante da realidade dos dias de hoje, afirmou João Paulo II, é mister lembrar que o trabalho é sempre a causa eficiente primária enquanto que o capital , sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento ou causa instrumental. Sendo assim, no confronto entre capital e trabalho, a prioridade é do trabalho: “é preciso acentuar e por em relevo o primado do homem no processo de produção, o primado do homem em relação às coisas”.
No último dia 04 de fevereiro, o Papa Francisco recebeu para uma audiência os representantes de diversos países engajados na Economia de Comunhão, um movimento econômico nascido no Brasil, por ocasião dos seus 25 anos de vida. Em seu discurso de acolhida, Francisco sinalizou para questões muito importantes, entre elas destaca-se a visão estrutural da economia. Ele recordou a passagem de Jesus quando expulsa os vendilhões do Templo, destacando que foi o próprio Jesus que categorizou o dinheiro como Senhor: “ninguém pode servir a dois senhores, a dois patrões: ou serve ao Dinheiro ou a Deus”. Portanto, numa perspectiva mais ampla, pode-se dizer que aqui estão bem destacadas duas estruturas econômicas antagônicas: um sistema concentrador acumulativo de bens ou um sistema produtivo-redistributivo. São sistemas incompatíveis pela própria essência de ser, antagônicos.
O primeiro sistema concentrador representa a avareza; o segundo redistributivo, a comunhão. No primeiro a produção da riqueza tem como fim a acumulação concentradora nas mãos de poucos; no segundo, produz-se para uma distribuição justa entre os sujeitos da produção. No primeiro a centralidade é o rentismo; no segundo, o trabalho humano. No primeiro os pobres, sempre mais crescentes, tornam-se objetos descartáveis e invisíveis; no segundo, os pobres ocupam a centralidade para os quais se destinam em primeiro lugar a distribuição.
Francisco ainda advertiu aos participantes para a necessidade de “mudar as regras do jogo econômico atual” buscando construir um novo sistema econômico no qual as vítimas do capitalismo sejam sempre menores a ponto de não existirem mais. Uma verdadeira comunhão só se realiza verdadeiramente quando não existir nenhuma pessoa descartada pelo sistema econômico. Comunhão não é apenas divisão, mas multiplicação dos bens, criação de novos pães, de novos valores, de novas realidades. E para isso é preciso sair às ruas para levar essa proposta a todas as pessoas de boa- vontade. Eis o desafio!
Sem dúvida, este evento da Economia de Comunhão é um contraponto àquilo que estamos presenciando no mundo, nos últimos tempos, e particularmente no Brasil onde está em movimento uma articulação poderosa da classe dominante objetivando, entre outras coisas, liquidar com os direitos trabalhistas, dizimar a previdência pública para permitir ao capital rentista ampliar sua participação na receita pública brasileira. Parece ser uma batalha de Davi contra Golias a criação de uma nova estrutura econômica que contemple a todos os humanos com os bens resultantes da produção social. No texto bíblico, a vitória foi do pequenino, criativo e corajoso jovem. Oxalá aconteça o mesmo no texto de nossa realidade contemporânea.