A UNIVERSIDADE COMO ESPAÇO DE DISPUTA E O LUGAR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS [ Para puxar conversa]

A partir da queda do Muro de Berlim, como marco temporal e simbólico do fim da Guerra Fria, temos o triunfo do neoliberalismo, momento a partir do qual a universidade passou a ser, de forma mais ofensiva, um espaço de disputa. No Brasil, esse fenômeno, que não era muito claro durante os governos pós-ditadura, está ficando patente e de forma grotesca no governo de Bolsonaro. A forma  impetuosa como vêm ocorrendo os embates sobre o papel da universidade,  e os ataques e as propostas para sua reestruturação, deixam claro que a instituição é um espaço de disputa, na qual as Ciências Humanas são ideologicamente desqualificadas por parte de ministros (Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub), também desqualificados e ideológicos. Portanto, o lugar que o governo Bolsonaro vai destinar à universidade no seu governo é mais fácil de ser entendido se a pensarmos não apenas como uma instituição de produção de conhecimento de excelência e formação acadêmica, mas como um espaço de disputa política.

 

A universidade é um espaço de disputa política por ser uma instituição que define horizontes de sentido. Isso implica  uma reflexão profunda sobre a sua dinâmica, sobre a sua lógica institucional, os sujeitos que habitam e circulam em seus espaços e fronteiras, as diretrizes que fundamentam e normatizam a produção de conhecimento, os argumentos que justificam a eleição de seus temas e suas linhas de pesquisas, as suas prioridades de investimentos, a institucionalização de centros e laboratórios de pesquisas, o foco das políticas de extensão e a relação da universidade com os problemas locais, nacionais e planetários.

 

Compreender que a universidade é um espaço de disputa não significa falar de forma nefasta que ela é um lugar de balbúrdia, mas compreendê-la como território de confrontação de significado, produção, circulação e proteção de conhecimento e de validez de discursosenunciações e saberes. Como cenário de tensões políticas, ela vem passando por várias mudanças no marco do contexto  da hegemonia neoliberal. Neoliberalismo, entendido não somente como doutrina econômica de expansão do capital, mas como, também, visão de mundo, como política gestora da colonialidade do poder, definidora de subjetividades e de políticas socioculturais. Não foi à toa que Bolsonaro inventou a ficção de um marxismo cultural como inimigo a ser combatido por meio de uma visão ideológica obscurantista e terraplanista, o que implica revisão curricular da universidade.

 

Dentro do horizonte de sentido neoliberal, a grande transformação pela qual a universidade deve passar implica a expurgação do seu caráter ético e humano, para que ela possa ser potencializada por uma lógica mercantil nas suas finalidades e de pôr um funcionamento empresarial na sua gestão. Administrar a universidade como empresa significa lhe designar a função de fazer investigações úteis ao mercado (neurotecnologias, nanotecnologias, inteligência artificial, biotecnologia, sistemas de armazenamento de energias, robôs, drones, biologia sintética, impressora 4D, etc.), promover a formação de mão de obra para o mercado empresarial,afastando-se de sua função histórica de formação humanista. Para parte dos neoliberais, os saberes aglutinados em torno do conceito de Ciências Humanas são  classificados como saberes ideológicos, sem utilidade e, portanto, desmerecedores de financiamento.

 

Com o neoliberalismo, a primeira reforma da educação foi a formação de uma consciência privatizante de líderes dos setores públicos e privados. Por meio de uma disputa poderosa de hegemonia, o neoliberalismo colocou em curso uma disputa subjetiva de ordem comunicativa, cultural, narrativa, educativa e comportamental, fundamentado na teoria da escolha racional, que, ignorando as estruturas sociais, reduz a ação social a escolhas individuais numa lógica competitiva em que o destino da vida é uma responsabilidade individual e não social, coletiva ou comunitária. Daí, a atitude de execrar e eleger como inimigo os gastos com políticas públicas (as famosas políticas de austeridade, PEC da Morte no Brasil) ser contra tudo que possa ser de uso comum, público ou patrimônio comunitário. Toda política de combate à pobreza, de responsabilidade coletiva e social, é combatida como coisa de comunista, embora muitos dos seguidores dessas posições mercantis sejam evangélicos (seguidores da Teologia da Prosperidade), católicos (principalmente sua ala conservadora) e se digam defensores da democracia.

 

O controle do conhecimento no século XXI é o assunto central nos avatares da matriz colonial do poder ou do sistema-mundo moderno colonial. A produção de conhecimento é o eixo central na atual luta pelo controle das formas de condições de existências materiais e simbólicas da humanidade: a autoridade, a economia, a sexualidade, a subjetividade e a natureza. É pelo controle do conhecimento que, na sociedade pós-industrial, ou chamada sociedade da informação, passa o atual debate político sobre o lugar e a função da universidade. Portanto, se a universidade precisa passar por mudanças, quais são essas mudanças? Quem as define? Uma universidade pública deve ter o mesmo sentido de horizonte que uma universidade privada?

 

Atualmente, uma parte dos conhecimentos, das ideias e invenções necessárias ao mundo do mercado provém de agentes epistêmicos que estão fora do mundo acadêmico, são centros de pesquisas que ostentam orçamentos milionários financiados pelo mundo privado ou por meio de parcerias público-privadas. No ano de 2003, o Fórum Econômico de Davos, que se realiza todos os anos na Suíça, criou o Programa Pioneira em Tecnologia – PPT, destinado a premiar as empresas de todo o mundo, em um total  de 30 a 50  por ano, que tenham se projetado por desenvolver novas tecnologias dentro do compromisso de “melhorar o estado do mundo”. O PPT incentiva a descoberta de novas formas para o uso de tecnologia orientado para o futuro da agenda econômica global das grandes corporações transnacionais, para obter crescimento econômico, para estimular o crescimento exponencial do consumo global, para desenvolver novas vacinas e para encontrar formas que melhorem a comunicação global.

 

Dentro do Fórum Econômico de Davos, em 2009, ano seguinte à crise do capital financeiro de 2008, cujo tema foi “dar uma nova forma ao mundo prós-crise”, realizou-se o Fórum das Universidades de Davos, o qual elegeu como uma de suas diretrizes que o conhecimento deve estar a serviço de valores e dos interesses do mundo corporativo. Nesse sentido, as universidades deverão ser ranqueadas pela sua produtividade útil ao mercado e pelo seu grau de internacionalização. Conhecimento útil ao mercado é todo aquele que possa ser aplicado, de forma direta ou transversal, ao processo de crescimento econômico que garanta a concentração de renda das grandes corporações transnacionais e que trate a natureza como objeto de conhecimento e exploração predatória.

 

Na edição do Fórum Econômico de Davos de 2020, ocorrido no mês de janeiro, o bilionário George Soros, que acumula riquezas com especulação financeira, quebrando as economias de países, anunciou a criação de uma rede global  de universidades para a promoção de ações de justiça, governança global democrática e direitos humanos. Ele destinou, para o início o projeto, o valor de um bilhão de dólares. A rede se chamará Open SocietyUniversity Network (OSUN), e, segundo George Sorosdeve lutar contra “os ditadores atuais e em gestão”, deve prover a liberdade de expressão, a diversidade de crenças e deve chegar aos estudantes mais necessitados fomentando valores de uma “sociedade aberta”, conceito elaborado pelo liberal epistêmico Karl Popper. Na ocasião, disse Soros: estamos procurando instituições parceiras que se sintam responsáveis pelo futuro de nossa civilização e pessoas inspiradas pelos objetivos do OSUN” (Fonte: conexaoplaneta.com.br – acessado dia 28/1/2020).

 

Nesse contexto, a questão do papel da universidade não pode ser decidida unilateralmente, e devemos nos perguntar: qual deve ser o horizonte de sentido de uma universidade pública? Quais devem ser as suas formas de funcionamento e financiamento? Quais são os fundamentos de um processo de investigação e produção de conhecimento para fazer frente às necessidades da humanidade no mundo contemporâneo e para construção de uma herança positiva para gerações futuras? Devemos distinguir entre conhecimentos, investigações criativas a serviço do mercado e financiados pelo mercado, mas normatizado e sob a vigilância de agências éticas do Estado, de conhecimento criativo voltado para o bem da humanidade e para a preservação de todas as formas de vida no planeta, mas ético e crítico dos excessos da colonialidade do saber.

 

A universidade pública deve ser colocada a serviço da humanidade, numa busca de solução criativa para os problemas sociais, em um diálogo com a pluralidade de saberes não acadêmicos e a serviço do comum. A universidade pública deve ser pluriversal, imaginativa e preventiva das mazelas produzidas pela lógica dodesenvolvimento moderno, que domina, explora e mata muitos para que poucos possam acumular riquezas.

 

Para uma opção decolonial, a universidade necessita de transformações antissistêmicas e pluriversais, e não de mudanças apontadas pelos gestores neoliberais e destacadas pelas corporações que atuam na disputa pelo monopólio dos mercados globais. A universidade pública deve ajudar a sociedade civil a pôr em justa dimensão o lugar do Estado e das corporações na sociedade presente e futura, já que suas ações incidem nas condições de nossa existência e do planeta. Portanto, o papel primordial da universidade é ético, sem prejuízo para produção de ciência e de tecnologia.

 

Para a opção decolonial, a transformação da universidade tem a ver com a pergunta acerca de quais são as necessidades do nosso tempo, o qual é caracterizado por uma crise estrutural do capitalismo e pela crise do padrão civilizatório da modernidade. Embora seja verdade que o padrão civilizatório moderno, com o seu conhecimento científico e tecnológico, tenha criado um mundo fantástico de possibilidades e de muitas facilidades, o mesmo conhecimento tem colocado em risco a existência de todas as formas de vida e do planeta.

 

Desenvolvido como suporte para o funcionamento da lógica do capitalismo, o padrão de conhecimento moderno gerou uma sociedade desigual, que exclui de seus benefícios e possibilidades fantásticas a maioria da população, gerando um planeta de miseráveis e de práticas genocidas e se tornou uma ameaça de existência para o próprio planeta. Para fazer uma pausa nessa reflexão, lembro Aníbal Quijano, que afirma que a luta pela liberdade ou pela emancipação é uma luta epistêmica. Na luta política pela definição do papel da universidade, é crucial a participação de todos os segmentos da comunidade acadêmica e parte da sociedade.

Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.

Mais do autor

Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.