Dizem
que um dia um planeta chamado Terra se acabou, exaurida.
Menos que lenda, era claro que era besteira: pensar que a humanidade tenha surgido num planeta tão remoto com um nome tão estranho.
Onde realmente se originou a humanidade? Agora que tudo mesmo parece que vai acabar isso não tem a menor importância. Só os filósofos e os idiotas devem se preocupar com isso.
Minha maior preocupação era continuar andando rumo a uma outra coisa que, intimamente, eu também considerava uma lenda: o antigo computador capaz de revelar as respostas a todas as perguntas. Mas por que ainda as pessoas precisam fazer perguntas? Isso eu não sabia, mas sabia de uma coisa: minhas dúvidas e incertezas eu tinha que guardar comigo. O acaso tinha me tornado a líder do bando, quero dizer, o acaso e minha extraordinária capacidade de roubar comida, coisa que não entra mais em questão. Quem poderia nos julgar agora? Sobretudo desde que não há mais a quem roubar, não há mais de quem roubar comida.
Já não existe mais comida.
Somos os pobres do universo, gente que não sabe de onde veio, e quando tem juízo não pensa sobre o assunto, e à qual sobraram apenas os limites perecíveis do corpo físico. Podíamos roubar antigamente, e os melhores de nós podiam até roubar até ficar ricos (quero imaginar que seriam os gênios de um mundo ideal), mas já não podíamos roubar a pouca comida dos outros pobres, porque isso já tinha sido feito e esses pobres morreram de fome, nem podíamos mais roubar o dinheiro dos ricos, porque o dinheiro já não existia, e os últimos ricos, rezam os boatos, jazem inertes e congelados em algum lugar do universo, à espera de nada.
“O que você quer perguntar ao computador?” me pergunta o marido de todas as coisas.
“Uma pequena resposta”, eu digo.
O nevoeiro era terrível. Só o que eu via era uma nuvem de areia, névoa amarela dizendo que desistíssemos, mas é um aviso que nunca funciona com imigrantes ilegais.
O coiote me garantiu que aquele era o último planeta próspero, dois anos atrás, quando começava essa jornada insana. Ele não nos conhecia, e não imaginava que ia se tornar nosso prisioneiro. Se tudo desse errado, ele pagaria conosco. Acabei me casando com ele e, assim, ele se tornou o marido de todas as coisas.
“Pequena resposta pra qual pergunta?” ele volta a perguntar.
“Não existem mais perguntas”, eu digo, e o meu desejo é dizer o palavrão que o universo ainda não tinha inventado. Eu não devia ter casado com um coiote.
Foram mais dois dias de caminhada. Metade da tribo morreu nesses dias de caminhada. A culpa foi mais do frio do que da fome. Depois da morte do último sol (que assistimos quase alegres naquele último planeta) a temperatura baixou a ponto de ser um milagre a sobrevivência da outra metade da tribo.
Chegamos ao computador, escondido num casebre estranho, ao lado do qual um inusitado gerador de energia ainda funcionava. O estranho computador era animado por uma alma chamada MS-DOS, um dos mais antigos mensageiros de Deus.
Chamei o de nós que mais conhecia as tecnologias do passado, o Pajé, e ele conseguiu acessar os segredos da máquina muda. A máquina respondeu como um corpo torturado que capitula.
“Pergunte.” Eu já não acreditava em perguntas, mas o último povo do universo tinha me seguido em busca de uma resposta.
“As forças do universo parece que vão se acabar por desgaste. Tudo vai morrer.”
“O computador diz isso?”
“Essa é a parte que já sabemos.”
“Tem como começar tudo de novo?”
“A resposta é não. Eu acho. E você quer começar tudo de novo pra viver de novo esse momento?”
“Tem como começar tudo diferente?”
“A pergunta é a mesma e a resposta é a mesma.”
“O computador disse isso?”
“Eu não sei o que diz o computador. Ele apenas anuncia que anuncia que anuncia que anuncia uma grande verdade.”
“Como você sabe?”
“Sempre vem uma coisa importante depois de dois pontos. E tudo que ele diz ele diz depois de dois pontos.”
“E o que ele diz?”
“Eu não sei. Ele diz numa linguagem que não se entende. Mas que deve ser a verdade.”
“De que adianta a verdade se a gente não entende?”
“A verdade é importante demais e talvez difícil demais pra que a gente entenda.”
“E por que ela está aqui se não dá pra entender.”
“Era injusto que não tivéssemos acesso à verdade.”
“Mas é uma verdade que a gente não compreende. De que adianta?”
“De nada. Mas não é culpa da verdade. A verdade nunca tem culpa.”
“Por que você não consegue pelo menos a resposta pra minha pergunta?”
“Ou eu estou certo ou não há dados suficientes pra uma outra resposta significativa.”
O Pajé respirou fundo de novo e fez mais uma pergunta, enquanto minha garganta, física e carnal, fechava.
Estranhamente conseguiu uma resposta. Ele perguntou quanto tempo tínhamos ainda, antes de se acabar toda a energia do universo.
A máquina disse que estávamos na última hora, e nos parabenizava por sermos os últimos clientes, e se apagou.
O Pajé continuou diante da máquina e ia ficar lá até o fim. O computador cometeu um erro de raciocínio ainda mais cruel do que a ironia humana de que se mostrara capaz no último momento, quando em algum lugar distante morria a última estrela. Éramos nós mesmos as últimas centelhas de energia do universo num planeta cada vez mais gelado.
Deito e acredito que todo o povo faz isso, o que resta do povo, se é que ainda éramos povo. O frio ia matar lentamente as pessoas ao redor, agora a pobre líder ladra de ninguém, e assim morreria, sem ter a quem contar o relato do último povo humano. Os adultos se conformaram logo e ficaram em silêncio. As crianças choravam e gritavam. Mas aos poucos se ouvia cada vez menos choro e cada vez menos grito. Em algum momento ia se calar o último grito e choro, e era fácil saber o que isso significava. Depois que isso aconteceu, ainda pude sentir, pela última vez, um chute tímido que vinha da minha barriga. Só me restava fechar os olhos e cantar, mesmo sem voz, a última canção de ninar.