A TERCEIRA VIA E A JOGADA DE SERGIO MORO

​Quando publicou o livro “A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da socialdemocracia”, Antony Giddens tinha como propósito estimular a articulação de um “novo centro” diante do fim do consenso do Welfare que havia dominado parte dos países industrializados, desde o pós-Guerra até o final da década de 1970, e diante do descrédito do marxismo e do colapso do socialismo real. Portanto, Giddens queria articular uma forma segura de administração do capitalismo diante das duas formas de intervenção fracassadas: o Estado de bem-estar social e o socialismo. Todavia, não queria cair no neoliberalismo.

​Para Antony Giddens, a primeira via se referia às ideias socialistas e reformistas em si mesmas. A segunda, ao neoliberalismo fundamentado no mercado. Já a terceira via era anunciada como uma espécie de renovação da democracia combinada com a administração do Estado, por meio das parcerias pública e privada e a criação de condições para a promoção do desenvolvimento global do capital. Algo próximo ao que hoje Nancy Fraser vem defendendo com o nome de “neoliberalismo progressista” frente ao neoliberalismo conservador de extrema direita, como o que vem sendo implantado no Brasil por Paulo Guedes.

​A terceira via de Giddens foi aplicada no Brasil por Fernando Henrique Cardoso em seus dois mandatos por meio do Plano Real, que introduziu as ideias de estabilidade econômica, de responsabilidade fiscal e promoveu, na área social, a Comunidade Solidária, que abrigou o Programa Fome Zero, o qual no governo Lula virou Bolsa Família. A terceira via de Giddens foi continuada, ainda, com os dois mandatos de Lula, e foi classificada por André Singer de “reforma gradual e pacto conservador” no seu livro “Os sentidos do lulismo”, cuja pretensão era a de fazer uma avaliação dos impactos do lulismo no Brasil. Portanto, os governos no Brasil, pelo menos no pós-Ditatura, nunca se constituíram uma ameaça ao processo de acumulação do capital e nenhum governo ousou fazer reformas estruturais contra o capital ou se colocar contra o modelo extrativista e rentista. O que chamamos de esquerda liberal no Brasil são os partidos comprometidos com o desenvolvimentismo, ou seja, com a administração do capitalismo dependente do sistema-mundo colonial moderno.

​Com o golpe de 2016, o pacto político que permitiu a Constituição de 1988 no país foi rompido, com as eleições de 2018 o pacto foi totalmente sepultado. A Constituição Cidadã, com seus direitos e garantias fundamentais, inibia a articulação das pautas da chamada direita e da extrema direita de se expressarem de forma explícita e aberta, tornando vergonhoso se assumir ou ser classificado de direita. O pacto político de 1988, em torno da Constituição Cidadã, permitiu que por mais de duas décadas a polarização política entre um polo de centro (aglutinado em torno PSDB) e um polo de esquerda liberal (aglutinado em torno PT), que para governar, no chamado presidencialismo de coalizão, contavam com os aliados do centrão, este sempre funcionou como uma espécie de condottiere moderno.

Com a quebra do pacto constitucional de 1988, a direita e a extrema direita perderam a vergonha de explicitar publicamente seus valores, suas pautas e de se exporem sem nenhum pudor na disputa aberta por hegemonia. As eleições de 2018 enfraqueceram o centro, o PSDB perdeu poder e uma nova polarização se impôs: extrema direita, articulada pela liderança de Bolsonaro e seus seguidores, e a esquerda liberal, articulada por Lula, o PT e seus aliados.

​Do ponto de vista econômico, as eleições de 2018 marcaram a consolidação do neoliberalismo expresso no Projeto Ponte Para o Futuro, que serviu de base para a consolidação do golpe parlamentar-civil-mercado, apoiado por parte do Poder Judiciário e dos mercados dos meios de comunicações. Todavia, a consolidação da agenda neoliberal, a provação e implementação de algumas reformas e medidas (trabalhista, privatizações , Lei de Congelamento dos Gastos Públicos/PEC da Morte, a Reforma da Presidência), as reformas e medidas em cursos (privatizações, Reforma Tributária e Administrativa) e a manutenção do modelo extrativista e rentista se tornaram, na visão do mercado, inseguras se conduzidas por Bolsonaro, que além da pauta dos costumes, atenta contra a ordem institucional, com o objetivo de instaurar um regime autoritário do tipo fascista, o que pode estimular um sentimento de radicalidade na população contra os interesses do mercado.

​O mercado extrativista, rentista e parte do mercado industrial e da construção civil fazem oposição à postura genocida de Bolsonaro no trato da pandemia da Covid-19 e as suas ações contra a democracia (fechamento do Congresso, defesa de golpe de Estado, fechamento do STF) e, em menor intensidade, a pauta dos costumes, mas apoiam e cobram dele celeridade na agenda de reformas econômicas. A Rede Globo é um bom exemplo dessa posição. Nesse cenário, como busca de um caminho seguro para continuidade da agenda neoliberal, foi lançada a ideia da necessidade de uma terceira via como forma de sair da polarização criada pelas eleições de 2018, que se reflete na intenção de votos dos eleitores para 2020.

​A terceira via proposta pelos setores do mercado no Brasil não tem nada a ver com a proposta original de Antony Giddens, mas com a construção de uma candidatura viável para enfrentar e vencer as eleições de 2022, que até o momento, pelo que indicam as pesquisas de intenção de votos, estaria polarizada entre Bolsonaro e Lula. É uma forma de garantir que a agenda neoliberal siga de forma segura e sem o risco de construção de um movimento de massas que possa questionar os interesses do mercado, principalmente numa conjuntura de agravamento da crise econômica refletida no aumento do desemprego, da fome, da miséria, da violência e mendicância nas ruas.

​Nesse cenário, a filiação de Sergio Moro ao Podemos, como provável candidato à disputa eleitoral em 2022, tem sido interpretada por alguns analistas políticos como uma jogada que enfraqueceria Bolsonaro e fortaleceria Lula. Não deixa de ser uma possibilidade, mas como o fazer político não é uma ciência, penso que a essa percepção podem ser agregadas outras. Bem como acho duvidosa a percepção de que a candidatura de Sergio Moro atrapalhe o intento do mercado em seu esforço de encontrar um candidato para quebrar a polarização Bolsonaro versus Lula. O próprio Moro pode estar apostando em ser o candidato do mercado.

​O jornal alternativo Intercept Brasil, edição de 13/11/2021, afirma que: “[…]a candidatura Moro segue como um machado no pescoço das pretensões de Jair Bolsonaro 2020. Moro e Bolsonaro disputam, no grosso, o mesmo eleitor”. Talvez, aqui esteja a grande sacada da extrema direita. Bolsonaro e Sergio Moro são fascistas, Moro mais sofisticado, aposta na construção de regras para um Estado de exceção, pode se apresentar como aquele que foi tolhido no seu intento de acabar com a corrupção no país, mas na presidência nada o deterá, pois a população já viu do que ele é capaz, não poupa grandes empresários e nem ex-presidente da República. Alguém pode perguntar: se esse for o discurso de Moro, não detona a candidatura de Bolsonaro, que vai aparecer como o presidente que mentiu quando disse que iria fazer uma nova política, que iria combater a corrupção, mas acabou com a Operação Lava Jato para nem ele, nem sua família e nem seus aliados serem arrolados por ela? Pode, mas a lógica política não depende só da lógica linear e ligeira, ela se move mais pelas incoerências.

​Outro raciocínio que cabe com possibilidade é o de que a extrema esquerda pode ter percebido que tem possibilidades com você Moro de segurar os votos de conservadores e autoritários e continuar no poder. Se, por um lado, Bolsonaro preservar até o final do primeiro turno entre 18% a 25% dos votos, ele pode passar para o segundo turno. Se Sergio Moro conquistar parte dos votos dos que não querem nem Bolsonaro e nem Lula, conquistar parte dos votos da extrema direita arrependida de ter votado em Bolsonaro, não por causa de suas pautas de costumes ou a pauta autoritária e fascistizante, mas pela forma genocida como tratou a pandemia, e, além disso, contar com parte de um eleitorado próprio, ele poderia ultrapassar Bolsonaro e se constituiria como uma outra opção da estrema direita para continuar no poder. Bolsonaro ou Moro no segundo turno significa que quem não for para a disputa final apoia o outro e não Lula. Ter duas candidaturas de extrema direita é uma forma de consolidar uma bancada de deputados e senadores, o que pode significar a estruturação da extrema direita no Parlamento. Com apenas uma candidatura, essa possibilidade é menor.
​Minha avaliação nesse momento é a de que não se pode descartar que a candidatura de Moro cria mais opções para a extrema direita fascistizante e dificuldades para a campanha do Lula, empurrando-o para uma aliança e uma agenda política de direita.

O próprio Lula já se movimenta tentando se credenciar para ser o candidato do mercado extrativista e rentista, já sinaliza que não tem problemas de conduzir o programa neoliberal e aceita ter Geraldo Alckmin, do PSDB, que anda falando em deixar o ninho tucano. Lula, num gesto demagógico, chegou a dizer que Alckmin “é o único tucano que gosta de pobre”.

​Grave e preocupante, nesse cenário, é a orientação do Lula e da direção nacional do PT para que seus diretórios estaduais priorizem as eleições de Lula em detrimento de uma política local própria inerente aos interesses do partido e da formação de uma boa bancada de governadores, deputados federais e senadores. A orientação que nos estados o partido priorize a campanha de Lula se aliando seja com quem for que esteja disposto a apoiar o Lula, ou seja, o partido deve navegar na incoerência, e deve abrir mão de tudo que possa ser um empecilho à ampliação ao apoio da candidatura do mesmo. Com essa orientação, o PT pode até eleger Lula, mas ao se descuidar da formação de uma boa base de apoio na Câmara e no Senado federal, no jogo próprio do presidencialismo de coalizão, pode ficar refém da extrema direita e do centrão. O caso do recém-eleito presidente do Peru, Pedro Castilho, que ganhou as eleições sem uma base de apoio e enfrenta dificuldades para governar, em apenas quatro meses já se falam em lançar mão de um mecanismo legal, chamado Vacância do Cargo por Incapacidade Moral, o que pode permitir a destituição dele do cargo, já que o país se encontra num processo profundo de instabilidade política.

​No campo das possibilidades e da incoerência que orienta o jogo político, é possível a candidatura Moro levar à formação de uma aliança do PT com o PDT, com Ciro na vice? É, mas o risco seria grande para o Lula. O risco seria o Ciro se colocar com posturas mais radicais do que o Lula e passar a fazer oposição ao governo, passaríamos a ter no país o que agora se passa na Argentina, onde o presidente Alberto Fernández vem sofrendo uma oposição sistemática por parte da sua vice, Cristiana Kirchner, o que tem levado Fernández a constantes derrotas que fragilizaram a sua autoridade para garantir a governabilidade.

​A terceira via foi a forma que o mercado encontrou para dizer ao campo político o que ele quer e o que ele permite. Parece que todos entenderam e estão se esforçando, mesmo que os discursos sejam uma babel. Vencer a ameaça fascista e o projeto neoliberal são desafios postos, mas quem falará claramente contra o mercado, contra as desigualdades obscenas e por uma política de distribuição de renda e riqueza no Brasil, o que implica a taxação de grandes fortunas e do capital rentista? Esse é o vazio que pode não ser preenchido quando uma disputa eleitoral é encarada por todas as forças políticas como um instrumento, uma oportunidade, de disputa do poder pelo poder.​

Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.

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Uribam Xavier

URIBAM XAVIER. Sou filho de pai negro e mãe descendente de indígenas da etnia Tremembé, que habitam o litoral cearense. Sou um corpo-político negro-indígena urbanizado. Gosto de café com tapioca, cuscuz, manga, peixe, frutos do mar, verduras, música, de dormir e se balançar em rede. Frequento os bares do entorno da Igreja de Santa Luzia e do Bairro Benfica, gosto de andar a pé pelo Bairro de Fátima (Fortaleza). Escrevo para puxar conversa e fazer arenga política.