A culpa, Brutus, não está nas estrelas
Mas em nós mesmos, se nos submetermos.
William Shakespeare, Júlio César
Há um ano e meio, num congresso na cidade mexicana de Monterrey, um cientista político uruguaio, que cursara o mestrado e doutorado em universidades brasileiras, quase às lágrimas lamentava: “O Brasil não merecia o Bolsonaro”. A reação natural naquele momento foi racionalizar: fazer o quê? A democracia tem dessas coisas, pois, afinal, se desenvolve no mar – às vezes de “serena claridade”, às vezes de “procelosa tempestade” – da incerteza. Assim é que, num panorama histórico-político e para satisfazer os gostos mais variadamente exigentes, já se elegeu Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, no regime constitucional de 1946, e Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, no regime constitucional de 1988. Mas, também, Jânio Quadros, Fernando Collor de Melo e Jair Messias Bolsonaro… Não cito neste momento Dilma Rousseff porque, a meu ver, foge aos dois agregados. Mas ressalto a desgraça da reeleição introduzida na ordem político-constitucional em meados dos anos de 1990.
O que era inicialmente um lamento evoluiu para uma pergunta horrorosa: como o Brasil foi capaz de eleger Bolsonaro presidente da República? Evidentemente, tem havido esforços de explicação do bolsonorismo, por parte de acadêmicos e jornalistas, e daqueles que Edmundo Burke denominou “filósofos de ação”, os políticos. Por sua vez, não deve ser olvidada a contribuição que se filtra do senso comum, vazada das conversas de bares e botecos, do humorismo, do mercado, das redes sociais e de outras instâncias da sociabilidade política.
Da academia, um dos esforços mais conspícuos é o do cientista político Jairo Nicolau, em “O Brasil virou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018” (Rio de Janeiro: Zahar, 2020), onde se ressalta que “a instabilidade política não foi suficiente para abalar a crença dos analistas e políticos que o pleito de 2018 seguiria o mesmo padrão. Se o PT e o PSDB polarizaram a disputa presidencial por duas décadas, por que isso não aconteceria novamente?” A análise levava em consideração que, para vencer, ou mesmo chegar ao segundo turno, um candidato necessitava de três requisitos: obter uma grande soma de dinheiro para financiar a sua campanha, dispor de um tempo razoável no horário de propaganda eleitoral e construir uma rede de apoio nos estados, sobretudo nos mais populosos. Destarte, neste momento em que se começam a cristalizar crenças acerca do futuro político próximo, a leitura de tal livro pode ser de boa ajuda.
A dezenove meses de eleição presidencial vem agora a interrogação desesperadora: o Brasil será capaz de reeleger Bolsonaro presidente da República? De fato, na quadra republicana nunca se assistiu a um presidente tão desleixado com as formas e os conteúdos republicanos como o atual. Não bastara o descuido com a crise sanitária gravíssima que assola o país, o discurso presidencial tem sido prenhe de arranhões institucionais. Ontem foi a ameaça de uso ou não-uso do “meu Exército”; anteontem “estão esticando a corda demais”; trasanteontem a ameaça de decretação do estado de sítio. E mais, o ataque especulativo contra o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, a ordem federativa… Além do mais, não se pode descurar de episódios de intimidação moral e ameaça física que, se não partiram do presidente, partiram das milícias bolsonaristas, sem que tenham a sua repreensão. A par disso, a peste da Covid-19 campeia pelo país, com o seu itinerário dantesco que, iniciado com o registro pelo Ministério da Saúde de um morto em 17 de março do ano passado, evoluiu para a quantificação de quase trezentos mil mortos, um morto por minuto, três mil mortos por dia, a falta de vacina, quatro ministros da Saúde em um ano, falta de oxigênio e de material para intubação…
Por estas plagas cearenses, a sabedoria popular afirma que peba não sobe em toco. Só se for por enchente, ou mão de gente. Guardadas as coisas que mudam, e na esperança de que não venha qualquer “enchente”, uma intervenção decisiva da “mão de gente” acontecerá no primeiro domingo de outubro do próximo ano, com a escolha presidencial em primeiro turno, ou três domingos depois, no caso de segundo turno. Por isso, será uma oportunidade, resolva dar cobro às “causas do descontentamento atual” (pedindo de empréstimo a expressão ao respeitável conservador Burke, citado acima). Afinal, como está posto na reflexão da epígrafe, se os nossos males não estão nas estrelas, mas em nós mesmo, assim como se se pôde causá-los, pode-se também esconjurá-los.