A politização da culpa e a monetização das penas

Não há crime sem culpados, nem inculpação sem provas. A culpa processualmente assente e comprovada conduz o réu ao cumprimento das penas consignadas na lei.
A natureza da pena assume as características de castigo, de punição. Estes objetivos visam, em teoria, dentre as conquistas civilizatórias, recuperar o infrator,  o criminoso assim qualificado, das suas faltas; todos, enfim,  que cederam à tentação e confrontaram as leis. Disto sabemos, sabem a enorme população de bacharéis, os estudantes que animam as nossas faculdades e os leigos de todo gênero que ocupam espaço e precedência no âmbito dos poderes do Estado.
As penalidades sofreram, entretanto, ao longo do tempo, gradações e pesos diferenciados. Muitos deixaram a cabeça no patíbulo, por simples descuido, imprudentes que foram com o uso das palavras; outros arderam ao arbítrio da fé, incontáveis criaturas tiveram os seus bens confiscadas e foram, assim, lançados à pobreza e a miséria.
O direito e a justiça foram fustigados, nestes últimos anos, recentes, pelo deslumbramento que iluminou a cabeça de juristas e conspícuas autoridades jurisdicionais de todos os graus. Teorias frescas, prenhes de modernidade, confundiram certezas mal acondicionadas e franquearam discursos desencontrados deitados nas altas cortes de justiça e na mídia.
Confundiu-se o que era reconhecido como registro constitucional pétreo, aos olhos dos cidadãos, com
normas  estatutárias, regramentos processuais e decisões monocráticas de juízes oniscientes e percucientes, facundos  e eloquentes nas suas manifestações “inter pares” e “urbi et orbe”.
A ascenção do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha fez-se mercê de expedientes arbitrários, porém eficientes para a lacração da opinião e da livre manifestação, comuns e necessárias nas democracias. Não foi diferente com a conquista do poder pelos bolcheviques, na Rússia. O socialismo originário serviu-se, como engenharia da tomada e sustentação no poder,  de formas explícitas e convincentes de amputação  da liberdade, de controle da opinião e cerceamento dos direitos da cidadania. O comunismo retirou a soberania da nação e a transferiu para o partido, e deitou sobre eles os controles políticos que transformaram a democracia em um arremedo a que foi dado a qualificação irrisória de popular. Democracia “popular”, enunciado agora dissolvido em um vago progressismo que poucos saberiam explicar.
Bens foram confiscados de antigos aliados e de criaturas impertinentes que se insurgiram contra a nova ordem. O apresamento de recursos e dos meios de subsistência, assim a perda de empregos e ocupações,  tornaram-se estratégia policial efetiva visando sobretudo a classe média, a intelectualidade e os funcionários públicos.
A nova ordem judiciária brasileira, de nascimento espontâneo, de vez que surgiu à revelia das instâncias onde as leis são elaboradas, conjugou estratégias e meios igualmente úteis e seguros para impor a sua força, e conjurou, com o mesmo rigor, o que restara de uma tradição jurídica de índole democrática. A prisão sem culpa comprovada amoleceu a resistência até mesmo dos mais confiantes, as escutas clandestinas violaram o espaço familiar, processos destituídos da necessária formalização asseguraram a acolhida dispensada a delações eructadas por grupos políticos pouco representativos. Como arremate, sobreveio o golpe severo sobre a fazenda privada dos cidadãos postos sob suspeito: o bloqueio dos bens e das contas bancárias dos que, demoniacamente, persistem no erro condenatório.
Já não se combate o inconformismo que a civilização nos concede como direito,  com prisões, torturas físicas ou morais, na guilhotina ou na fogueira das ilusões ou por fuzilamento.  Castiga-se o implicante com a pobreza, à míngua dos haveres que lhe foram confiscados —  acrescidos pelas multas corrigidas segundo critérios incontestáveis.
Toda e qualquer forma de manifestação ou de insurgência indesejável será qualificada pelos riscos pressentidos e estará inevitavelmente condenada  à inadimplência…

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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