A POLÍTICA E O SAGRADO

Política é um processo decisório distinto da técnica embora se sirva dela. Mas juízo político é juízo de valor. Identificar o sexo de um passarinho é técnica. Valorar tal conhecimento é juízo de valor e por isso é juízo político. Uma eleição em família pode decidir se há interesse em saber o sexo da ave canora. Não soluciona, porém, o juízo de realidade sobre a questão. Escolha política é juízo de valor, conforme penso haver demonstrado no livro “Pesquisa acadêmica”.

A antropogênese dos valores se presta ao esforço de contestação da normatividade ética, mas não demonstra a sua imperatividade. Os impasses do cosmocentrismo e do teocentrismo se radicam na dificuldade de demonstrar, via razão secular, o fundamento de validade da ética. O sagrado é relacionado, no Dicionário Houaiss da língua portuguesa, com divindade ou algo assim considerado e como antonímia de secular. Xamãs e o poder de curar e encontrar objetos perdidos valendo-se de meios mágicos; oráculos, intermediando o contato com os deuses e oferecer respostas; sacerdotes e o poder de ministrar ritos de expiação são figuras do sagrado em cuja descrição a palavra poder é empregada reiteradamente.

Gaetano Mosca (1858 – 1941), na obra “História das doutrinas políticas”, diz que as elites são: guerreira, sacerdotal, política, econômica e intelectual. Sacerdotes têm presença constante entre os que obtêm de terceiros condutas omissivas ou comissivas a gosto ou contragosto, conforme a concepção de poder de Maximilian Karl Emil Weber (1864 – 1920).
O iluminismo e as teorias que dele descendem apresentam-se como seculares. Mas cultivam valores aos quais atribuem status de sagrado, como igualdade e justiça. Valoram positivamente doutrinas impregnadas pela ideia de uma Idade de Ouro do passado, semelhante ao paraíso perdido judaico-cristão. A “queda” pela apropriação dos meios de produção, com a perda da comuna primitiva, é parte da semelhança citada, que inclui a volta ao paraíso, como destino histórico de uma raça ou classe social revolucionária.
A revolução é semelhante a invasão do céu usando a Torre de Babel, como salienta Michael Oakeshott (1901 – 1990), na coletânea “Sobre a História e outros ensaios”. A dimensão mítica do pensamento político, foi demonstrada por Raoul Girardet (1917 – 2013)) na obra “Mitos e mitologias políticas”. A persistência da figura do bode expiatório nos ritos sacrificiais, nas diversas culturas, foi demonstrada por Renê Noël Theophile Girard (1923 – 2015), na obra “O sacrifício”. Relacionando os aspectos abordados na obra de Girard com o nosso tema, vislumbramos nas guilhotinas da Revolução Francesa, nos paredões, gulags e pirâmides de crânios das revoluções do século XX a continuidade o rito sacrificial do bode expiatório, que pode ser a nobreza, a burguesia ou raça, religião, grupo identitário. O Estado laico não afasta o sagrado. Antes lhe deu liberdade. Não obriga agentes políticos a renunciar às suas convicções. Contribuiu para a superação das religiões territoriais, em que o povo seguia, no território de um rei, a religião do monarca.

Os valores do crente o acompanham na vida pública. A organização da sociedade está posta no ordenamento jurídico e o Direito é fato, valor norma (Miguel Reale, 1910 – 2006, na obra “Teoria tridimensional do Direito”). A presença do sagrado na cultura contemporânea é integram a representação política. Religiões políticas, porém, são territoriais, reivindicam a exclusividade das religiões oficiais; têm escritos sagrados, como as religiões do livro, prometem o paraíso que se realiza como distopia.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.