A piscina de seu Pires

Para chegar à piscina de seu Pires basta andar por doze quilômetros pela estrada à esquerda da cidade de Canoa Grande, que fica no litoral nordeste, a treze quilômetros da capital. É uma simples e encantadora cidade. Possui natureza exuberante e patrimônios arquitetônicos invejáveis de cunho civil e religioso. Lá se encontra o primeiro templo cristão do continente, ao qual são atribuídos vários milagres, construído pelo suor do povo originário, não cristão. O mais recente prodígio foi em relação à peste amarela que assolou a região mais ao sul e ao centro, deixando os infectados mental e moralmente incapacitados por uma longa temporada. Mas os cidadãos de Canoa Grande escaparam ilesos, lá ninguém amarelou.

Ao lado esquerdo de Canoa Grande localiza-se a famosa cidade de Bacurau, com seu importante Museu do Povo, mantido por toda a população e visitado pelos turistas desejosos por conhecimentos humanísticos e libertários. Do lado oposto, pegando uma curva bem acentuada à direita, situa-se o município de Bozolândia, cuja secretária de cultura é a famosa Firmina Duarte, cantora oficial na televisão do hino “Pra frente, Bozolândia”. Foi a única ação que ela conseguiu colocar em prática à frente da secretaria, além de soltar muito pum, como todos ficaram sabendo.

Firmina é uma das expressões mais exatas do cambalacho imposto naquele lugar nos últimos tempos. Até promotores e juízes fazem parte desta alicantina. Basta dizer que um promotor evangélico chegou ao ponto de acusar, sem provas, o Inocente, por crimes que o seu grupo de promotores cometia. E o juiz mal-humorado teve a cara de pau de condenar o Inocente. O pior é que o âncora do jornal televisivo noturno de Bozolândia repetia todas as noites que as mentiras do promotor evangélico e do juiz mal-humorado eram verdades. Cruz-credo, que lamaçal! Isso é que é indecência!

A piscina de seu Pires sempre esteve no mesmo lugar. Nunca foi removida. Firme, mantém-se constantemente fazendo circular suas águas transluzentes oriundas de um olho d’água de fonte cristalina que a nutre noite e dia. Nunca negou banho a alguém. Seu Pires deixava a porteira aberta do seu sítio para quem quisesse banhar-se nas águas límpidas. Ele tinha um câncer no cérebro, mas até o último momento manteve-se acolhedor a quem lhe pedisse ajuda. Talvez também por isso não tenha sido acometido pela peste amarela. Banhava-se diariamente na piscina para descarregar a poeira do dia a dia, dizia ele. Tinha a plena convicção de que, cedo ou tarde, a verdade viria à tona sobre o golpe que conspiraram contra o Inocente.

Grampo era um grande nadador. Com sua irmã Adelaide foram frequentadores assíduos dos banhos piscinais. Iam sempre aos domingos em companhia de Ângela, Cris e Sandro. A viagem de ônibus era breve, em torno de 25 km todo o percurso. Mesmo assim, Adelaide tirava um breve cochilo apoiada no ombro de Sandro, o que sempre o deixava com a respiração mais ofegante. Mas a bela Adelaide era um anjo com asas de águia, sonhava em alçar voos altaneiros, enquanto Sandro apenas pensava em viver o momento presente de sua adolescência, sem maiores ambições. Adorava quando a bela descansava a face em seu peito durante o percurso. Era o momento dos seuvoos silenciosos.

A piscina tem 20 metros de comprimento e profundidade variando entre um e três metros. Uma das diversões dos dois grandes amigos era a disputa de nado livre. Competição sempre muito acirrada; mas, apesar de grande nadador medalhista, Grampo não conseguia sobrepor-se à desenvoltura de Sandro naquelas águas cristalinas. A peleja consistia em nadar duas piscinas; Sandro deslizava naquele espelho com maestria, mas nunca se interessou em competir oficialmente. O seu prazer estava em poder divertir-se naquelas águas especiais em companhia do amigo e das amigas.

Enquanto os amigos se desenfadavam na água, as meninas corriam para os pés de araçá-do-campo, abundante naquela região, doce que nem mel, fácil de pegar com a mão porque crescem no máximo até três metros de altura. Dizem que quem come araçá mata todas as verminoses, e que as mulheres ficam mais belas quando comem o araçá no pé. Além dos araçás, elas também se deliciavam com os jambos-rosas, um fruto muito delicado, de casca lisa e cerosa, com o qual também matavam um pouco de sua sede.

Quando voltavam de sua farta apanhada, conversavam sobre Sandro. Cris estava de olho nele, mas sentia que ele não lhe dava bola. Adelaide, sempre astuta, disse-lhe que precisava arrumar um jeito de chamar sua atenção. E acertaram que quando chegassem de volta ela empurraria Cris na parte mais funda da piscina. Como ela não sabia nadar, Sandro iria ao seu socorro para salvá-la em seus braços. Uma farsa muito arriscada, mas que na opinião de Adelaide poderia surtir um bom resultado. E assim o fizeram.

Socorro! Socorro! Gritavam Adelaide e Ângela: “Cris está se afogando!”. Distraídas, elas executaram o plano sinistros em se aperceberem que os jovens estavam tirando um cochilo à sombra de uma frondosa mangueira. E enquanto isso Cris afundava cada vez mais. Desesperada, Adelaide atirou-se na piscina para salvar a amiga. Ângela correu acelerada até a mangueira para acordar os rapazes. Agitados, eles dispararam e se jogaram na água. Grampo cuidou de socorrer Cris e Sandro foi ao auxílio de Adelaide. Por muito pouco Cris não veio a sofrer um dano mais traumático. Aquela montagem mentirosa poderia ter-lhe custado sua própria vida. Envergonhada, sem nada a dizer e em estado de choque, ela desabou num pranto inconsolável. Os rapazes calaram. Perceberam que algo de muito estranho havia maculado a transparência entre eles. Lentamente, cada um foi arrumando suas mochilas. Não havia mais clima para continuarem ali. Em completo silêncio, fizeram o caminho de volta às suas casas. Desde então, nunca mais conseguiram se encontrar na piscina das águas cristalinas.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .